O marxismo de Lívio Xavier

Jornalista, tradutor, poeta e crítico literário, foi pioneiro do trotskismo brasileiro, tendo sido membro do Partido Comunista do Brasil (PCB) e, mais tarde, fundador do Grupo Comunista Lênin e da Liga Comunista Internacionalista

 

Por José Eudes Baima Bezerra *

XAVIER, Lívio Barreto; “L. Lyon”, “L. Mantsô” (brasileiro; Granja/CE, 1900 – São Paulo/SP, 1988)

 

1 – Vida e práxis política

De família abastada, Lívio Xavier foi uma criança cercada dos confortos possíveis naqueles tempos e paragens do interior do Ceará, mesmo sendo o terceiro de uma família de 13 rebentos. Teve como pais Elisa Barreto Xavier e Ignácio Xavier – quem de início foi caixeiro-viajante e mais tarde se associou ao poderoso comerciante Carvalho Mota, o que lhe permitiria constituir uma empresa própria (chegando a ser tratado como “coronel”). O pai do futuro revolucionário era adepto da reacionária oligarquia dos Acciolys, laços que resultaram em facilidades usufruídas depois pelo filho – quando teve de se deslocar a Fortaleza para estudar.

A formação espiritual de Lívio Xavier, seu ingresso no universo da leitura e da escrita, começou muito cedo, por volta dos cinco anos de idade, quando sua inteligência já chamava a atenção – influenciado por sua mãe, que lia muito, e pelo contato com os negociantes que transitavam na firma do pai. Porém, seu caráter questionador também o afastava da participação nas tradições locais, especialmente as religiosas, às quais dedicava indiferença no que dizia respeito à doutrina, mas não em relação aos aspectos cênicos dos rituais, que o fascinarão até a idade adulta. Além da fruição estética, a vida religiosa na pequena Granja (ainda mais tendo como padrinho de crisma o próprio bispo diocesano) era um sinal de distinção social; mas ele nunca chegou a ser um fiel.

Desde os primeiros estudos na escola, exerceu em paralelo um intenso autodidatismo, já que a família constituíra um bom acervo de livros célebres: de Victor Hugo, Herculano e Júlio Diniz a José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Olavo Bilac. Aos 13 anos, partiu do porto de Camocim, cidade litorânea mais próxima de Granja, para Fortaleza, onde levaria a cabo os estudos secundários e viveria sob a proteção dos amigos ilustres da família – até se mudar para o Rio de Janeiro para cursar direito.

A evolução política de Xavier, de jovem intelectual inquieto – insatisfeito com o estado de coisas – até sua militância comunista, passou pela amizade e camaradagem com outro nordestino, o pernambucano Mário Pedrosa, seu colega na Faculdade de Direito, no Rio de Janeiro. Os amigos compartilhavam interesses pelos temas da arte, da literatura e da política. Com efeito, ambos se tornaram fortes referências ao longo do século XX, no cenário da cultura brasileira: Pedrosa na teoria e crítica de arte, Xavier na crítica literária e teatral.

Nos agitados anos 1920, os companheiros se lançaram juntos na jornada revolucionária. A trajetória de ambos em direção ao comunismo foi alicerçada numa intensa e ininterrupta reflexão comum, testemunhada por uma alentada correspondência, que foi recuperada e publicada na obra Solidão revolucionária, de José Castilho Marques Neto (1993). Em cartas escritas desde 1923, Pedrosa e Xavier discutiam apaixonadamente acerca dos nomes mais inovadores da literatura europeia do século anterior e faziam referência aos novos autores surrealistas, como André Breton, o que desempenhará certo papel na adesão dos amigos ao Partido Comunista do Brasil (PCB) e, depois, sua deriva no seio da Oposição comunista. Os surrealistas franceses, desde seu primeiro Manifesto, estabeleciam uma relação entre arte, literatura e revolução proletária que os dois companheiros, na medida do possível, acompanharam em tempo real.

Lívio Xavier e Mário Pedrosa não fizeram parte do agrupamento de militantes que fundou o PCB em 1922, mas desde muito cedo acompanharam a atividade do Partido, sob o impulso dos ecos da Revolução Russa de outubro de 1917. Em seus diálogos, estavam presentes referências a Lênin, Trótski e à revolução socialista na Rússia. Pedrosa, por esta época, mostrava-se impressionado com a intransigência revolucionária de Lênin e com a potência imaginativa da prosa de Trótski, que lia nas versões em francês. Entre 1925 e 1927, entre idas e vindas entre o Nordeste e o Rio de Janeiro, Xavier e Pedrosa se envolveram indiretamente em atividades do PCB, em especial participando da criação da Revista Proletária, que teve apenas uma edição, na qual Xavier contribuiu com o artigo “Partido e revolução”. Em 1927, filiou-se ao PCB.

Por esta época, chegava ao ápice a luta interna na Internacional Comunista (IC), cujas tensões iniciais ocorreram quando Lênin, principal dirigente da Revolução de Outubro de 1917, ainda estava vivo, mas que tomaram maiores proporções após sua morte. A crise tinha como pano de fundo o fato de que a Rússia, numa situação de virtual desaparecimento físico da geração que fizera a Revolução de 1917 (fruto da guerra civil e da invasão do país por várias potências estrangeiras), com a atividade industrial e a população operária tendo caído abaixo da de 1917, teve de apelar à reintrodução dos mecanismos de mercado, com o objetivo de reativar a vida econômica. O Estado soviético, o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e a IC receberam, num tempo histórico curto, uma nova leva de membros egressos das camadas sociais beneficiárias das medidas de mercado (adotadas de forma emergencial). Neste cenário, em 1924, Stálin ascendeu ao poder, vindo a consolidar sua posição hegemônica em 1928. Dadas as circunstâncias, anunciou-se então um novo rumo político, baseado na teoria do socialismo num só país – elaborada por N. Bukárin, que advogava que o socialismo poderia ser atingido na União Soviética mesmo em meio a regimes capitalistas hostis. A partir de 1923, Trótski iniciou a resistência a esse processo, mas, paulatinamente, os partidos da IC aderiram ao stalinismo. Em 1927, Trótski foi destituído do Comitê Central do PCUS, e em 1928 foi deportado, iniciando uma jornada de exílio.

Lívio Xavier e Mário Pedrosa aderiram formalmente ao PCB justamente no momento em que chegavam ao Partido os ecos desta divergência ocorrida no PCUS. No Brasil, a crise teve três pontos-chave: o entendimento de que o país ainda teria “restos feudais” advindos do passado colonial, do que se concluía que a “etapa” da revolução no país tinha de se dar em aliança com a burguesia local; a política sindical, em que se advogava a criação de sindicatos sob hegemonia do PCB (o que gerou divisões); e o regime do próprio Partido que, sob influência da chamada “proletarização” da organização, afastou dirigentes sob o argumento de que se devia ampliar o peso de trabalhadores manuais na direção. Este conjunto de questões esteve na raiz de uma sequência de episódios que foram formatando uma iminente cisão do PCB. João da Costa Pimenta, importante sindicalista comunista do Rio de Janeiro e um dos fundadores do PCB, já se insurgira contra a orientação sindical do Partido; Joaquim Barbosa, secretário sindical do PCB, pelo mesmo motivo, foi expulso no início de 1928. Com forte influência dos oposicionistas à direção, o Comitê Regional do PCB do Rio de Janeiro foi destituído pela Comissão Executiva em abril de 1928.

Lívio Xavier participou intensamente destes embates. Foi o principal redator de um documento dirigido à Comissão Executiva, assinado por outros cinquenta militantes, dentre os quais vários dirigentes, em que se apontava o curso antidemocrático da direção, criticava-se a imposição de uma orientação por meios administrativos e se reivindicava uma conferência partidária para restabelecer a democracia operária. O documento suscitou uma campanha contra seus signatários, que foram afastados do PCB. Para consolidar o novo status quo partidário, a direção convocou o III Congresso do Partido, a se realizar sem a presença do grupo oposicionista. Xavier foi novamente o principal redator de um memorial dirigido aos delegados do congresso – mas que, apesar de circular nos meios partidários, não foi admitido como documento congressual. A “Cisão de 1928”, como ficou conhecida, estava consolidada. Mário Pedrosa acompanhou tudo isso de longe, pois estava a caminho de uma escola de quadros em Moscou, quando foi detido na Alemanha, onde tomou contato com as teses de Trótski e da Oposição de Esquerda Internacional (OEI). Numa carta a Xavier (1927), mostrou-se desanimado com o curso da IC, pois o Congresso Bolchevique expulsara Trótski e a Oposição do partido soviético; estimulava o camarada a agir no sentido de um reagrupamento revolucionário no Brasil, identificado com a OEI. Xavier, porém, o informou que a situação no Brasil era desalentadora; a expulsão dos oposicionistas do PCB conduzira a uma dispersão dos quadros organizados.

Por este período, Lívio Xavier assumiu o contato com o centro da OEI, em Paris, o que fez os movimentos de reorganização dos oposicionistas brasileiros girarem em torno dele e de um punhado de dirigentes desligados do PCB. Divergências com a direção do Partido quanto a greves, que remontavam às da “Cisão”, reconectaram estes militantes de São Paulo com outros que se mantinham até então no PCB, caso dos reunidos na célula “4R” do Partido, a qual levantou questões correlatas àquelas que levaram à “Cisão” – e foi igualmente expulsa. A reunião destes elementos de São Paulo e do Rio, reforçada pela volta de Mário Pedrosa ao País, levou ao surgimento do Grupo Comunista Lênin (GCL), primeira expressão organizada da OEI no Brasil. Conforme a orientação internacional, o GCL se apresentava como fração pública do PCB, reunindo militantes que se encontravam fora do Partido, por força de decisão da direção, mas que lutavam de fora, buscando influenciá-lo. Assim, boa parte da atividade política do GCL estava direcionada aos membros do PCB e à opinião pública comunista no seio do movimento operário. Com esta orientação é que surgiu o órgão público do GCL, o jornal A Luta de Classe, além de uma edição brasileira do Boletim da Oposição (internacional). Em 1930, a Conferência Internacional da Oposição, realizada na França, registrou o GCL como grupo aderente.

Lívio Xavier, sob o codinome Lyon, foi o principal redator de A Luta de Classe e, junto com Mário Pedrosa, o maior articulista do movimento oposicionista brasileiro. Nesta posição, Xavier foi autor de análises agudas acerca das relações de classes no Brasil, no quadro da subordinação ao imperialismo estadunidense, que começava a se consolidar. É o caso de análise em que mostra que a modernização capitalista do Brasil se dava por crescente dependência ante o imperialismo, por meio do enredamento entre a burguesia interna do país (então dita “nacional”) e o capital financeiro internacional.

O GCL, todavia, dispersou-se após alguns meses. A Oposição brasileira só se reagrupou a partir de uma nova dissidência no PCB. Simpatizante das ideias da Oposição desde a “Cisão”, o dirigente Aristides Lobo rompeu com o Partido no final de 1930. A discussão com ele permitiu a retomada das atividades do GCL, com os antigos membros e novos militantes. Em 21 de janeiro de 1931, numa conferência em São Paulo, proclamou-se a criação da Liga Comunista Internacionalista (LCI). Ao lado dos pioneiros da Oposição no Brasil, Xavier ocupou lugar dirigente, integrando a Secretaria-Geral da organização, cujo titular seria Lobo, e a Secretaria de Agitação e Propaganda que, entre outras coisas, relançou A Luta de Classe. Apesar de minoritária, a LCI teve presença em setores do proletariado. Por sua decisão de se situar na vanguarda das ações, deu prioridade ao trabalho em São Paulo, para onde se deslocara o eixo da luta operária no País, ainda que Pedrosa permanecesse no Rio de Janeiro; durante alguns anos, contando com um modesto quadro de militantes, desempenhou um papel importante, seja impulsionando uma chapa de unidade de forças populares nas eleições para a Constituinte de 1934, seja levantando um programa de independência sindical (em face da ofensiva de Getúlio Vargas contra a estrutura sindical autônoma). Contudo, o que mais marcou a existência da LCI foi o lugar que ocupou na realização da Frente Única Antifascista, à qual atraiu inclusive o PCB (após certa resistência inicial). Esta Frente protagonizou o principal episódio de enfrentamento ao integralismo (que foi a versão brasileira do fascismo, à época), conseguindo dissolver, por meio de mobilização, a demonstração fascista programada para a Praça da Sé (São Paulo), em 1934.

Engolfada em nova crise – que opôs Xavier e Pedrosa a Aristides Lobo –, a LCI se dissolveu. Pedrosa seguiu na batalha para colocar em pé uma organização trotskista no Brasil, sendo delegado da América do Sul na Conferência que proclamou a IV Internacional (setembro de 1938), da qual se tornou dirigente. Já Xavier abdicou da militância organizada, sem nunca se afastar do marxismo, o qual continuou sendo a base teórica de sua militância na crítica literária. Nessa condição teve participação ativa, nos anos 1940, na impulsão do jornal Vanguarda Socialista, que reunia intelectuais de esquerda opositores do stalinismo, como o próprio Mário Pedrosa, Patrícia Galvão (Pagu), Geraldo Ferraz e Edmundo Moniz, entre outros. Foi este periódico que publicou pela primeira vez no país o Manifesto por uma arte revolucionária e independente, de L. Trótski e André Breton.

A partir de então, Xavier dedicou-se de forma integral ao trabalho como crítico literário, especialmente nas páginas do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo. Nesta atividade, que se prolongou pelas décadas de 1950, 1960 e 1970, o marxista alcançou grande reconhecimento, chegando a ser premiado, em 1976, por seu livro de crítica, daí originado, O elmo de Mambrino – publicado no ano anterior. Entretanto, de forma geral, ainda que questões do marxismo seguissem tendo presença em seus escritos deste último período, desde o fim de sua experiência no jornal Vanguarda Socialista, Xavier não mais militaria formalmente na política.

Lívio Xavier faleceu em 1988, legando um rico material para o conhecimento da memória e da história dos movimentos sociopolíticos e culturais brasileiros do século XX.

2 – Contribuições ao marxismo

Lívio Xavier introduziu pioneiramente as ideias de Leon Trótski e o próprio trotskismo no Brasil. Ao lado de Mário Pedrosa, sempre articulou a atividade revolucionária com as lides literárias. Já nos anos 1920, ambos mantinham intenso contato com as vanguardas europeias, em especial com os surrealistas, de cujos principais órgãos eram leitores, particularmente a revista francesa Clarté.

O lugar do pensamento de Xavier na política e na cultura brasileira se situa no contexto da história do PCB, organização que esteve presente na vida cultural, literária e artística do país desde a sua fundação. Pode-se dizer inclusive que foi continuador da atividade de alguns de seus fundadores, como Astrojildo Pereira, um pensador bastante independente que se chocaria com o Partido no início dos anos 1930 – o que teve reflexos na relação entre os comunistas e o mundo das artes e das letras.

As principais contribuições de Lívio Xavier ao marxismo no Brasil constam de seus escritos como dirigente do GCL e da LCI. Tal contribuição esteve centrada na busca de uma interpretação marxista dialética, não mecanicista, da realidade nacional, contrapondo-se ao esquematismo que até então afetava as elaborações do PCB. As posições de Xavier e dos grupos que animou podem ser sintetizadas nas resoluções e comunicados destas organizações, na maior parte em parceria com Mário Pedrosa. Os textos buscavam uma alternativa à visão de Octávio Brandão – cuja obra Agrarismo e industrialismo (1926) estabeleceu por estes tempos as bases do pensamento pecebista –, em um esforço por entender a formação nacional a partir de sua situação de ex-colônia e, logo, de país dependente.

Nas posições expressas publicamente por Xavier e Pedrosa, desmontava-se a tese do passado feudal do país, bem como a ideia de uma “burguesia progressista” que supostamente se contrapunha à conservadora burguesia agrária. Eles mostravam que, ao contrário, a burguesia brasileira não era produto do enfrentamento com classes feudais, mas que seu advento decorria diretamente dos privilégios senhoriais e que, em certo momento, foi alçada ao mercado mundial pelo capital internacional.

Assim, lutas clássicas da burguesia dos países centrais do sistema capitalista (como aquela pela afirmação da soberania e unidade da nação) se efetivavam no Brasil sob a forma de combates intestinos entre diferentes frações regionais pela hegemonia (que apareciam como oposição entre centralização e federalismo). Os autores demonstram que a luta por tal hegemonia empurrava os setores mais dinâmicos da burguesia a uma crescente subordinação ao imperialismo, especialmente por meio dos empréstimos; com isto, havia uma forte tendência da burguesia brasileira de utilizar o Estado para obter as condições necessárias à consolidação de seus negócios, o que conduzia à burocratização e ao autoritarismo estatal. A elaboração dos dois autores antecipou análises que, somente mais tarde, outros estudiosos da realidade brasileira chegariam. Em seu trabalho, ambos os dirigentes visavam à construção de uma organização brasileira da Oposição de Esquerda. Entendiam que era preciso fomentar a auto-organização do proletariado, única força capaz de liderar a nação para realizar um programa de soberania e desenvolvimento nacional, na transição ao socialismo.

Lívio Xavier foi pioneiro na introdução da literatura e, em geral, da arte surrealista no Brasil. Teve acesso em primeira mão às publicações da ala mais à esquerda do surrealismo europeu (A. Breton, Pierre Naville, Louis Aragon e outros), recebendo com razoável regularidade publicações como Clarté e La Révolution Surréaliste. Xavier, nesta etapa da juventude, relacionou audazmente as ideias de Aragon e Breton com as posições de Trótski sobre a questão da cultura e da arte. Ele e Pedrosa projetavam um estudo da arte nacional, nunca realizado como tal, com o fim de construir uma “teoria social brasileira” revolucionária.

No começo dos anos 1930, o PCB adotou a linha da “proletarização”, que assimilou a política cultural emanada de Moscou (conduzida por Andrei Zidanov), em especial depois do Congresso de Escritores Russos, de 1934. Tal política afastou uma importante geração de literatos formados na quadra da Revolução de Outubro e que reivindicavam certa bandeira de liberdade da arte – que vigorou ao longo dos anos 1920. Lívio Xavier se pronunciou contra esta orientação, especialmente quando o PCB criticou a publicação da obra Caminho de pedra, da escritora cearense Rachel de Queiroz, considerada em desacordo com a linha do Partido. Xavier desenvolveu ulteriormente uma orientação cultural coincidente com as ideias resumidas por Trótski e Breton no Manifesto por uma arte revolucionária e independente (1938). Defendeu uma liberdade “completa” para a arte – desempenhando uma militância crítica ao “realismo socialista” defendido por Zidanov.

Assim, no que diz respeito aos problemas da cultura, da arte e da literatura, ele desenvolveu em sua crítica – de viés erudito e universalista – as posições que adquiriu no movimento trotskista. Nos anos 1930, isto o aproximou de Rachel de Queiroz que, após ser expulsa do PCB por discordar das críticas a sua obra, acercou-se brevemente do trotskismo.

Por esta época, em plena militância trotskista, o teórico se transferiu para São Paulo, onde trabalhou no Diário da Noite, em que acompanhou de perto a evolução de figuras do modernismo brasileiro como Oswald e Mário de Andrade e Pagu. Deste período, é muito lembrado seu “Prefácio” ao clássico de André Malraux, A condição humana (Rio de Janeiro: Mundo Latino, 1948), com uma interessante crítica artística e literária ao stalinismo.

O curso do pensamento estético de Xavier esteve pautado por suas relações com o surrealismo, estabelecidas autonomamente, antes das famosas conversas entre Trótski e Breton, no México, numa aproximação parecida com aquela que Walter Benjamin realizou em direção ao mesmo grupo. Também, para o autor, o surrealismo era uma contraposição à moral burguesa idealista e à afirmação de um ideal de liberdade que fosse distinto do humanismo tradicional – estabelecendo uma visão de “vasos comunicantes”, na expressão de Breton, entre a realidade e o sonho, entre a razão e a embriaguez. Para Xavier, assim como para Benjamin, o surrealismo ornava com as palavras de ordem do Manifesto comunista (1848), de Marx e Engels.

Não por acaso, o jornal Vanguarda Socialista, com o qual Lívio Xavier contribuiu regularmente, publicou o Manifesto de Trótski e Breton, em 1946. Em 1972, Xavier recolocaria o problema da atualidade deste texto, no artigo “O surrealismo e o manifesto sem adesão”. Assim, depois de abandonar a militância política formal, exerceu sua atividade como crítico e jornalista defendendo “a liberdade da arte para a revolução, a revolução para a liberdade da arte”.

As reflexões de Xavier acerca da cultura, da arte e da literatura se dispersaram numa miríade de artigos publicados na imprensa, em especial no jornal O Estado de S. Paulo. Sua influência no âmbito da crítica literária brasileira marcou época, conforme o testemunho de importantes pensadores contemporâneos – caso de Antonio Candido, que observou que grandes escritores de seu tempo manifestaram publicamente seu apreço pelas opiniões do marxista.

3 – Comentário sobre a obra

A fortuna literária de Lívio Xavier não se consubstanciou em muitos livros. Como dirigente revolucionário, no âmbito do GCL e, depois, na LCI, Xavier produziu numerosos escritos que, contudo, não subscreveu, visto que apareceram como resoluções coletivas dos grupos políticos. Como jornalista, seus trabalhos estão dispersos em artigos nos jornais Diário da Noite, Vanguarda Socialista e, principalmente, em sua coluna chamada “Revista das Revistas”, publicada no “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo. Sua contribuição ao marxismo esteve fortemente ligada à introdução do trotskismo no Brasil, tanto no plano das ideias quanto no campo da organização, especialmente no final dos anos 1920 e na década de 1930.

Apresenta-se a seguir um rol de obras capaz de sintetizar a contribuição escrita de Xavier: “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil” (1931), publicado no jornal A Luta de Classe (edição confiscada), e mais tarde recuperado e republicado na obra Na contracorrente da história: documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933), organizada por Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs (São Paulo: Brasiliense, 1987); Tempestade sobre a Ásia (1934), escrito sob o pseudônimo de “L. Mantsô”, abordando problemas da revolução nos países asiáticos; Infância na Granja (1974), obra autobiográfica; o destacado O elmo de Mambrino: ensaios críticos escolhidos (Rio de Janeiro: José Olímpio, 1975); Dez poemas de Lívio Xavier ilustrados por Noêmia Mourão (São Paulo: Cultura Brasileira/Massao Ohno, 1978); e o apêndice intitulado “Documentos”, contendo a correspondência entre Lívio Xavier e Mário Pedrosa de 1926 a 1930, incluído no livro de José Castilho Marques Neto, Solidão revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993).

Foi à frente da imprensa da LCI que Mário Pedrosa e Lívio Xavier, sob os respectivos pseudônimos M. Camboa e L. Lyon, publicaram no jornal A Luta de Classe (1931) uma das primeiras análises de conjunto da situação do país pós-Revolução de 1930, sob o título “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil” – como alternativa à linha do PCB, ainda situada sobre as bases da obra de Octávio Brandão, Agrarismo e industrialismo, de 1926. Neste célebre trabalho, Xavier e Pedrosa partiam das condições em que o desenvolvimento da indústria, no contexto do monopólio do café no mercado mundial, conduzia a frágil burguesia local a uma crescente subordinação ao capital estrangeiro, donde vem “a sua incapacidade política, seu reacionarismo cego e velhaco e – em todos os planos – sua covardia”. Neste contexto, o “Esboço” criticava a caracterização do país feita pelo PCB, baseada na ideia de que a massa da população brasileira seria formada de pequenos proprietários, uma pequena burguesia de perfil transplantado da realidade europeia, que não correspondia à vida real do Brasil. Neste sentido, este texto é um marco na construção de uma interpretação da realidade brasileira ao largo da visão hegemônica do PCB. Teve uma recuperação problemática para chegar até nós, uma vez que o jornal A Luta de Classe, em que saiu originalmente, foi apreendido pela polícia, e sua publicação posterior em livro demandou uma tradução da versão em francês – publicada pelo Secretariado da OEI.

Já no texto publicado com o título “Documentos” (incluído no citado Solidão revolucionária, de Marques Neto), observa-se a construção das concepções de Xavier, no quadro do GCL e da LCI, por meio da correspondência entre ele e M. Pedrosa de 1926 (período anterior a sua adesão ao PCB) até 1930 (quando já estava em plena atividade na OEI). Ali, de forma um tanto assistemática, suas ideias políticas e estéticas aparecem embrionariamente por meio da discussão acerca da situação brasileira, mundial e dos problemas do PCB.

Com efeito, a questão que atravessou a obra de Lívio Xavier como militante e como crítico (durante anos, em colaboração com Mário Pedrosa) foram as linhas de força de uma política cultural – e como pensá-las no contraste com a política do PCB. Sob esta orientação, sua crítica dialogou com os mais importantes movimentos literários do país no século passado, valorizando a invenção, mas sem se negar a questionar até os artistas mais criativos. Este foi o caso do seu conhecido ensaio sobre o teatro de Oswald de Andrade, incluído em O elmo de Mambrino – obra de maturidade, originada me meados do século XX, quando de sua longa militância jornalística nas páginas de O Estado de S. Paulo. Neste livro de crítica, o autor passa em revista várias décadas de arte e literatura no Brasil. Os artigos nele reunidos incluem interpretações sobre diversas obras da literatura e das artes plásticas, passando por temas da filosofia, história e ciência política – o que denota sua ampla formação intelectual.

No final da vida, depois de anos pontificando no “Suplemento Literário” d’O Estado de S. Paulo, publicou o livro de reminiscências, Infância na Granja (São Paulo: Massao Ohno, 1974). Em seguida, lançou o já aludido tomo de poesia – Dez poemas de Lívio Xavier ilustrados por Noêmia Mourão.

Lívio Xavier também exerceu importante atividade de tradutor, que iniciou como uma tarefa militante, quando verteu para o português obras de Rosa Luxemburgo (Reforma ou revolução) e de Leon Trótski (Terrorismo e comunismo e Minha vida, de 1929), para a Editora Unitas – chegando a ser indicado por Trótski como o “tradutor autorizado” de suas obras no Brasil. Ao longo dos anos, o comunista traduziu ainda, entre outros, autores como: N. Maquiavel (O príncipe e Escritos políticos), P. Kropótkin (Em torno de uma vida), B. Spinoza (Ética), F. W. Hegel (um compêndio da Enciclopédia das ciências filosóficas), Thomas Mann (Morte em Veneza), Edgar Allan Poe (O poço e o pêndulo), A. Labriola (Ensaios sobre o materialismo histórico), e Mahatma Gandhi (Memórias de Gandhi).

Recentemente, o Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Unesp anunciou um livro dedicado à correspondência de Xavier, Lívio Xavier: correspondências e correspondentes (ainda não publicado).

Ademais, a Biblioteca Digital da Unesp disponibiliza obras raras do Acervo Lívio Xavier (https://bibdig.biblioteca.unesp.br), colecionadas ao longo de sua vida; obras que integram um conjunto bibliográfico maior, composto de milhares de escritos e documentos que estão sob a responsabilidade do Cedem. Já no portal Marxismo 21 (https://marxismo21.org) encontra-se digitalizado o texto “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil” (1930).

4 – Bibliografia de referência

ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Dainis (Org.). Na contracorrente da história: documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933). São Paulo: Brasiliense, 1987.

BARBALHO, Alexandre. Lívio Xavier: política e cultura. Fortaleza: A Casa, 2003.

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. “Mário Pedrosa, Lívio Xavier e as origens do marxismo no Brasil”. Marxismo 21, 2013. Disp.: https://marxismo21.org.

FACIOLI, Valentim (org.). Breton-Trotsky: por uma arte revolucionária e independente. São Paulo: Paz e Terra/Cemap, 1985.

KAREPOVS, Dainis. Luta subterrânea. São Paulo: Hucitec/Ed. Unesp, 2003.

LÖWY, Michel. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MARQUES NETO, José Castilho. Solidão revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

Notas

* José Eudes Baima Bezerra é professor da Universidade Estadual do Ceará; pesquisador na área de política educacional e filosofia da educação, é graduado em Letras, com doutorado em Educação (Universidade Federal do Ceará). Coordena o Grupo de Estudos Obra Histórica e Filosófica de Demerval Saviani. Autor de, entre outras obras: Direito à educação e progressão continuada (Veneta, 2015).

* Com colaboração e edição de texto de Felipe Santos Deveza, Yuri Martins-Fontes e Vânia Noeli Ferreira de Assunção, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.