O marxismo de Liborio Justo

Político, escritor, viajante, foi um dos introdutores do trotskismo na Argentina, aderiu ao movimento reformista, criticou a estrutura latifundiária e defendeu a luta dos povos originários e a integração continental Por Cristina Mateu * [Tradução de Yuri Martins-Fontes e Carlos Serrano] [PDF] JUSTO, Liborio; “Quebracho”; “Lobodón Garra” (argentino; Buenos Aires, 1902 – Buenos Aires, 2003) 1 – Vida e práxis política Liborio Justo nasceu no seio da oligarquia argentina, na virada do século XX. Em precoce autobiografia (Prontuario, 1940), apresenta as raízes, os enredos e vínculos políticos que marcaram sua vida, descrevendo como gerações de sua família estiveram ligadas a processos e a personagens da história nacional. Um de seus bisavós chegou à Argentina em 1829, nos tempos da guerra entre Unitários e Federais (entre 1820 e 1853), tornando-se proprietário de terras. Seu avô paterno, natural de Corrientes, foi deputado, poeta, historiador, maçom, autor do primeiro Código Rural correntino e, brevemente, governador desta província (1871). Seu avô materno, filho de espanhóis, integrou o Corpo de Caçadores, como encarregado da luta contra os indígenas araucanos na fronteira Sul, tendo posteriormente participado da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, em 1865. Seus pais pertenciam a antigas famílias de proprietários de terras “decadentes”, mas orgulhosas de sua posição social e desejosas de recuperá-la. Seu pai era capitão do exército, motivo pelo qual a família veio a se instalar nas proximidades de Campo de Mayo (zona militar próxima à capital federal) – período que ele recordaria como anos de isolamento social. O jovem Justo viveu ainda sob excessivos cuidados de familiares e empregados, em uma atmosfera de forte sentimento religioso, que o sufocava. Em 1911, entrou no colégio La Salle, em Buenos Aires – tendo detestado tanto a escola como a cidade. Seu interesse pela literatura e suas atitudes extravagantes foram sua resposta a uma educação que considerava “livresca e indigesta”, afrontando os privilégios sociais de um ambiente aristocrático e religioso que rejeitava. Suas preocupações recaíam sobre a origem da vida, do mundo, o destino do homem e seu próprio destino, as expressões americanistas que descobria – rejeitando as inclinações europeístas de sua família. Nessa época, dedicou-se com seriedade à leitura de autores russos, como Dostoiévski, e de latino-americanos, como Horacio Quiroga, além de participar de competições esportivas. O conhecimento escasso e confuso do jovem Justo sobre a situação mundial, na época de início da I Guerra Mundial, o levou a admirar a força da Alemanha e a desconhecer os acontecimentos sociais que abalavam a Rússia czarista. Em 1918, entrou na faculdade de Medicina, impelido pela família. Estes foram os tempos da luta estudantil pela Reforma Universitária, com a ocupação da Universidad Nacional de Córdoba, e da intensificação das lutas operárias que explodiriam na greve insurrecional conhecida como Semana Trágica. A agitação universitária e a confraternização com jovens de diferentes setores sociais abriram nova perspectiva para suas preocupações e buscas. Foi candidato a delegado, o que lhe permitiu estreitar laços com estudantes de direita e de esquerda. Durante este tempo, dedicou-se à fotografia e escreveu seus primeiros artigos – sobre questões universitárias. Avançou nos estudos de Medicina, continuando com sua militância junto ao centro acadêmico; tornou-se assistente de vacinação e ajudante de laboratório. A agitação universitária da Reforma, que propunha a destruição da velha universidade e a construção de um mundo novo, o aproximou da chamada Nueva Generación – que questionou a I Guerra e saudou a Revolução Socialista na Rússia. Em meio ao movimento estudantil, viajou com seu pai ao Chile, aproximando-se das pegadas indígenas do Caminho Inca e se comovendo com a imponente paisagem montanhosa do Aconcágua e da Patagônia. Esta foi uma das vezes em que se afastou da Faculdade, pela qual não se interessava. Apesar da abertura a novos horizontes políticos e sociais, entre 1921 e 1924 ele permaneceu preso a um ambiente social que desprezava. Os sentimentos contraditórios gerados por sua condição de intelectual burguês o faziam agir de maneira frívola, embora suas reflexões se fortalecessem por meio da leitura de escritores como Jack London, Kipling, Joseph Conrad (interessando-se pela cultura anglo-saxônica e pela arte renascentista italiana). O retorno ao curso de Medicina o colocou novamente em contato com a Nueva Generación e o movimento reformista – em cujos debates se denunciava a expansão imperialista dos Estados Unidos sobre o México e a América Central. Isto o levaria a estudar a história da América do Sul e começar a considerar a possibilidade de uma revolução continental como solução para os problemas sociais. A nomeação de seu pai como ministro da guerra, em 1922, fez com que este jovem rebelde se retraísse. Seu refúgio foi o estudo da história da Argentina e da América Latina, cujos países estavam submetidos aos interesses expansionistas dos EUA e de sua Doutrina Monroe. Em 1924, por ocasião do centenário da Batalha de Ayacucho, viajou com seu pai ao Peru, junto à delegação oficial, participando de opulentas celebrações. Neste país, constatou a miséria e a opressão das massas indígenas e mestiças, comprovando a má condição imposta pelo domínio colonial e imperialista a esses territórios – que haviam sido o centro do grande Império Inca e onde ainda permaneciam vestígios dos antigos ayllus originários (forma de organização social comunitária). Em 1925, zarpou do porto de La Plata para a Terra do Fogo, percorrendo as províncias de Santa Cruz e Chubut, visitando o campo petrolífero da empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales. Partiu novamente para o Norte da Argentina, cruzando Entre Ríos, Corrientes e Misiones. Neste novo itinerário, escutou a língua guarani e descobriu a natureza exuberante da selva. Seguindo pelo Alto Paraná até as cataratas do Iguaçu, conheceu os mensús – trabalhadores contratados para serviços em moinhos e plantações de erva-mate, tratados como “verdadeiro gado humano” –, ouvindo relatos de exploração e escravidão. No trajeto, cruzou com os tenentistas brasileiros rebelados, vindos da Revolta Paulista de 1924, por meio de quem tomou conhecimento do general Isidoro Dias Lopes e da Coluna de Luiz Carlos Prestes. Sem recursos para prosseguir com suas aventuras, inscreveu-se como eletricistaContinuar lendo “O marxismo de Liborio Justo”