Dicionário marxismo na América: um resgate histórico de memórias combatentes

Após meia década de trabalhos coletivos, vem a público obra que registra vida, pensamento e práxis política dos primeiros marxistas das nações americanas

Por Yuri Martins-Fontes, Joana Coutinho, Pedro Rocha Curado, Felipe Deveza, Paulo Alves Jr. e Solange Struwka *

O Dicionário marxismo na América é uma obra de resgate histórico da memória dos primeiros pensadores e militantes que, a partir do referencial teórico do materialismo histórico, se dispuseram a refletir e enfrentar os problemas sociais, políticos e econômicos próprios das novas nações americanas, dando início ao desenvolvimento do pensamento-luta marxista no continente.

Trabalho educacional e crítico de características inéditas, sobretudo em língua portuguesa, o projeto é coordenado pelo Núcleo Práxis de Pesquisa, Educação Popular e Política da Universidade de São Paulo – organização que se dedica a atividades políticas e de educação popular – e envolve atualmente quase uma centena de pesquisadores voluntários, de diversos países, nessa operação de investigação arqueológica das origens do marxismo nas Américas.

Os primeiros tomos, previstos para mais de mil páginas, trazem verbetes que abarcam biografias e ensaios sobre as ideias e práxis política de cerca de 150 marxistas que viveram, escreveram e atuaram nos países americanos – em um período que abrange desde o século XIX (formação do marxismo no continente), até os anos 1970 (quando se agrava a crise estrutural capitalista e se multiplicam os marxismos).

Por ora, após meia década de esforços coletivos, o dicionário marxista começa a vir a público de modo gradual: seus verbetes poderão ser lidos livremente na rede, no formato de “artigos”, disponíveis periodicamente no portal do Núcleo Práxis-USP e republicados por destacados portais parceiros. Esta degustação prévia – do primeiro volume, relativo ao período de formação do marxismo na América – se estenderá ao longo dos próximos anos, visando tanto a popularização da obra (cujo objetivo é não só teórico, mas educacional), como dar espaço a leituras críticas e eventuais aprimoramentos dos textos, antes de vir a público em formato livro.

Aguardada para breve, a publicação completa está a cargo das Edições Práxis em coedição com a Editora Expressão Popular, e contará com duas edições: uma impressa (a preços populares) e outra digital (gratuita).

Primórdios da obra

Nos idos de 2015, os fundadores do Núcleo Práxis-USP, entre encontros políticos e debates do Grupo de Estudos sobre o Marxismo (um de seus primeiros projetos), começam a cogitar expandir as atividades do coletivo no sentido da educação popular. Era uma época difícil, em que se gestava no Brasil um golpe de Estado concretizado no ano seguinte. Em meio a este contexto, dois novos projetos são pensados: um fórum de discussão sobre direitos sociais (que pouco mais tarde foi constituído, em parceria com associações e comunidades da capital paulista); e uma antologia, em um só tempo crítica e didática – que reunisse ensaios sobre destacados marxistas latino-americanos, de modo a oferecer a estudantes e trabalhadores um panorama das teorias e práticas marxistas desenvolvidas em nossa América.

Nesse processo, o coordenador-geral do Núcleo Práxis, Yuri Martins-Fontes, em reunião no Laboratório de Economia Política e História Econômica da USP, expôs a ideia ao professor Wilson do Nascimento Barbosa, que dirigia as pesquisas da entidade. Em uma tarde de diálogo, a ideia se lapidou e expandiu. Ao invés de mais uma antologia, com complexos artigos, que tenderia a se restringir ao território da academia – ponderou-se: por que não reunir mais esforços e produzir uma obra maior, uma publicação educativa, de referência, com textos mais breves mas que dessem conta de apresentar a grande diversidade de problemas e correntes do marxismo desenvolvidas por mais de um século ao longo do continente – um livro que pudesse servir não só aos estudos secundários e universitários, mas à formação política de jovens socialistas?

A semente estava plantada. O projeto chegou a ser redigido e apresentado a uma prestigiada editora, que requereu um verbete, como exemplo. O coordenador respondeu a solicitação, elaborando um primeiro texto sobre Mariátegui, baseado no modelo que recentemente desenvolvera em sua tese sobre o marxismo latino-americano (depois publicada como Marx na América). A editorial aprovou a publicação, embora ressaltando que naquela conjuntura não poderia se engajar na produção do projeto. A realidade nacional – econômica, social, cultural – que não era favorável, logo se deteriorou. O Núcleo Práxis-USP contava então com pouco mais de uma dezena de membros, dentre os quais poucos se dispuseram à aventura. Sem apoio material ou ao menos estrutural, o plano foi engavetado.

O renascimento

No ano de 2018, o Núcleo Práxis vive um período de crescimento, como resultado da movimentação em torno de seus projetos – em especial o Grupo de Estudos (que então lia O capital, de Marx), a tradução coletiva Historia y Filosofía (seleção de Caio Prado Júnior, publicada em 2020, na Argentina), e o Fórum de Formação Política de Lideranças Populares (cujas conversas regulares reuniam educadores e lideranças comunitárias). Muitos militantes – pesquisadores de diferentes áreas, universidades e países – aderem ao coletivo.

Com este movimento de expansão, a organização ganha ânimo e braços para considerar novas ações. Reuniões sobre possíveis rumos se sucedem, até que é aprovado o plano de se construir uma publicação periódica: uma revista política de viés popular, que oferecesse a estudantes e trabalhadores alguma voz dissonante naquele ambiente fascista que reverberava no país – época de crescente irracionalidade, senão apoiada, consentida pela grande mídia e demais forças neoliberais, irritadiças com as reformas sociais (básicas) dos governos populares.

Nossa experiência com periódicos era pequena – limitando-se à de poucos membros, que na década de 2000, haviam editado por alguns anos o tabloide A Palavra Latina. Por outro lado, o bom momento do coletivo se mostrava na própria intenção, manifesta por vários dos participantes, de se embrenhar em um projeto periódico – de fôlego.

Há um vai-e-vem de propostas, debates, até que o plano Dicionário é retirado da gaveta. Parcialmente reelaborado, é apresentado a interessados, em reunião que tem lugar em teatro do Centro de São Paulo, reunindo membros do Núcleo Práxis que orbitavam a ideia da publicação, além de convidados atraídos pela proposta. Ali renasceu o projeto.

Pensando o marxismo na América

No ano seguinte, em sua Assembleia Geral, o Núcleo Práxis-USP elege uma nova direção, passando a contar com a força de novos camaradas que há tempos atuavam nos Cursos de Formação e nas publicações do coletivo (material didático, traduções marxistas, colaborações com a imprensa independente). Paulo Alves Junior (secretário-geral) e Solange Struwka (vice-coordenadora) passam a compor a Coordenação-Geral da entidade; em paralelo, Pedro Rocha Curado assume a recém-criada Coordenadoria de Comunicação Política – cuja função seria difundir nossos trabalhos editoriais e de educação popular, inclusive no meio digital que se agitava.

Os debates em torno do Dicionário se intensificam, tornam-se mais regulares, mas faltava ainda sistematizar tanta energia. Para isto, foi criado o Seminário Pensamento Marxista na América – cujos participantes tinham a finalidade de investigar e selecionar os mais destacados marxistas do continente, para que tivessem suas histórias, pensamentos e ações políticas analisadas, registradas e divulgadas ao público. Como estratégia para melhor organizar os trabalhos, divide-se os seminaristas em cinco subgrupos – cada qual responsável por estudar a história do marxismo das nações de sua respectiva região: Brasil; Cone Sul; Andes; México e América Central; América do Norte e Caribe. Começava – agora na prática – a odisseia editorial.

Em sua formação inicial, o Seminário agrega uma dezena de pesquisadores, o que logo duplica. Entretanto, no decorrer dos estudos, constatou-se a insuficiência deste número, ao se compreender melhor a complexidade da tarefa – caso por exemplo da dificuldade em se acessar informações sobre determinadas personagens históricas fundamentais. Uma obra de tamanho porte precisava de mais coautores, colaboradores, coordenadores.

Para tanto, a Coordenadoria de Comunicação Política foi reforçada – passando a contar também com Joana Aparecida Coutinho e Felipe Santos Deveza –, com o propósito de estender nossas redes políticas com movimentos sociais e acadêmicos, estabelecendo conexões que apoiassem tanto a estrutura básica do projeto, como o recrutamento da força de trabalho intelectual necessária para sua produção.

Cabe um aparte para recordar que neste tempo, começo de 2020, a situação sanitária se agravou no mundo, iniciando-se o período de confinamento devido à pandemia. Diante das restrições, as reuniões e debates políticos presenciais que o Núcleo Práxis promovia precisaram se adaptar ao modelo remoto (caso das atividades de formação política, em 2021 realizadas por videoconferência). Apesar da frieza e mesmo da precariedade de diálogo características das relações digitais, este súbito impulso técnico permitiu ao coletivo multiplicar vínculos – constituindo laços, por vezes bastante longínquos, mas que se mostraram consistentes.

Com o deslanchar das pesquisas do Seminário e o ingresso dos novos coordenadores, foi ampliada a Coordenação Editorial do Dicionário: equipe responsável pela organização geral, distribuição de tarefas, cronogramas, prazos, acordos e condições de publicação, e pela revisão crítica e edição final dos verbetes e documentos relativos ao projeto. Antes formada pelos três representantes da Coordenação-Geral, passaria então a incluir os três membros da Comunicação Política.

Um encontro com marxistas históricos

Foi assim que por cerca de dois anos, reunindo-se mensalmente, os membros do Seminário levaram a cabo uma pesquisa histórico-arqueológica que se dedicou a descortinar a memória dos personagens marxistas das nações sob a alçada de seus respectivos grupos de trabalho, esforçando-se por reconhecer não só esses protagonistas, mas as condições, os meandros da história em que eles estavam imersos – o contexto de suas ideias e ações. A cada mês, nos surgiam novos nomes de pensadores comunistas, desvendados por leituras centradas tanto na letra do próprio autor, como na de seus estudiosos. Informações biográficas, polêmicas políticas, textos teóricos foram escavados com vagar em bibliotecas e em incursões a arquivos, por vezes particulares.

Mas foi especialmente nossa orientação pelo diálogo – pela escuta dos sujeitos históricos de cada nação – que nos levou às mais valiosas pistas, o que se deu mediante a busca dos seminaristas por obter informações diretas. Entrevistas orais ou por escrito foram realizadas com líderes sociais e militantes de partidos comunistas, socialistas, trabalhistas de vários países, além de intelectuais e acadêmicos de humanidades de diversas universidades nacionais. Com esse conhecimento local, resultante da rede de contatos internacionais que foi estabelecida, pudemos recolher opiniões mais vivas acerca do marxismo e dos principais marxistas de cada país. Isto, somado a nossos estudos anteriores – bibliográficos, generalistas –, permitiu que o processo de pesquisa e seleção se tornasse mais democrático, diversificado.

Para complementar este alicerce de conteúdo, prévio ao processo de redação, investigamos ainda o contexto histórico de cada nação no período em questão, bem como aspectos historiográficos e filosóficos, particulares e universais do marxismo desenvolvidos por seus representantes.

Ao fim do primeiro ano de seminário, os membros de cada subgrupo começaram a expor aos demais participantes suas descobertas, momento em que passamos a discutir coletivamente o resultado de cada pesquisa. A partir desta prática dialógica, foram elencados, avaliados, cotejados e escolhidos os nomes de quase uma centena de marxistas históricos – que tenham deixado seu pensamento registrado de algum modo (livros, artigos, manifestos, discursos transcritos, entrevistas, correspondência) –, os quais viriam a compor o volume relativo ao período de formação do marxismo na América.

Se o corte epistemológico da obra deu preferência a autores que desenvolveram reflexões marxistas autênticas – seja com relação às análises históricas com que investigaram particulares questões nacionais, seja no âmbito mais estritamente filosófico (conceitos universais, totalizantes) –, não obstante foram valorizados também aqueles militantes que, tendo desenvolvido com menor originalidade os aspectos teóricos da concepção materialista da história, dedicaram suas vidas às tarefas políticas próprias de um comunista: organização, conscientização popular, divulgação do pensamento-luta marxista através de trabalhos de base (educação, sindicatos, jornalismo independente).

Ademais, entre outros critérios nos quais nos apoiamos para a eleição dos marxistas a serem biografados, priorizamos dar ênfase à diversidade, com atenção tanto ao gênero, como às etnias que formam os povos americanos: aos indígenas, aos negros, às mulheres. E isto, senão em cada país (dadas as restrições da época), ao menos em cada região do continente. Nos empenhamos também por abarcar no volume marxistas do máximo de países da América (e das várias partes do Brasil), de modo que afinal alcançamos ter representantes de todas as regiões do continente e de quase todos os países – embora não todos, já que neste período algumas nações estavam ainda em formação, ou eram colônias subjugadas.

Mãos à obra

Havia chegado enfim a hora de nos centrarmos na redação, na organização dos aprendizados acumulados. Dá-se início à atividade de elaboração em massa dos textos, tarefa delicada que deveria se guiar por nosso modelo específico de verbete – didático e crítico –, o qual, embora com o propósito de obter capilaridade social, trazia também análises e aprofundava tópicos essenciais, não se reduzindo a descrições. A busca por manter esta uniformização e qualidade nos exigiria mais etapas de que o previsto, em um processo que começava com os autores da primeira versão, seguia para os revisores (de forma e conteúdo), e ainda, por vezes, para redatores complementares e tradutores, antes de chegar aos editores – que avaliavam o verbete como um todo, tendo eventualmente que regressá-lo a uma etapa anterior.

Não demora a se tornar nítido que um projeto de tal magnitude – e sem recursos institucionais – acabaria por se estender demais, caso não angariasse voluntários que se engajassem junto à equipe, ainda pequena relativamente ao tamanho da empreitada. Para solucionar a limitação, em 2021, o Núcleo Práxis-USP abre um edital público com vistas a selecionar novos coautores para a execução da obra. Como requisitos, os candidatos deveriam ter estudos em ciências humanas ou filosofia, com ênfase no marxismo ou em questões políticas e sociais próprias às nações americanas, de preferência tendo produzido pesquisas que demonstrassem afinidades temáticas com o projeto.

Bastante divulgado, com publicação na mídia independente e disseminado através das redes sociais dos vários envolvidos, o edital surpreendeu: em um mês se atingiu quase cinquenta inscrições. A análise das candidaturas foi realizada pela Coordenação Editorial, baseando-se em: primeiro, uma carta de intenção que requeria ao interessado que sugerisse, dentre o rol de marxistas levantados, algum sobre o qual gostaria de escrever, explicando seus motivos em sucinta redação; e logo, um currículo “político-acadêmico” descrevendo experiências nas áreas em questão, especialmente trabalhos relacionados ao marxismo, educação, história das Américas e à própria escrita, além de formação acadêmica e atividades políticas e profissionais. O processo seletivo teve sucesso, tanto em quantidade como em qualidade. Dentre os inscritos, três quartos em pouco tempo já estavam integrados ao grupo, o que pelo menos dobrou o coletivo de trabalhadores do Dicionário.

Paralelamente, pesquisamos especialistas internacionais na obra de alguns dos marxistas elencados para o volume, os quais em geral tinham as mesmas nacionalidades dos biografados. A partir de entrevistas remotas – o que nos permitiu aos editores conhecer melhor a trajetória e trabalhos de cada intelectual contactado, além de avaliar seu interesse –, fizemos convites pontuais, obtendo o engajamento de mais de uma dezena de coautores

Com mais gente envolvida, e mais tarefas surgindo, foram criados comitês específicos para responder às novas demandas, a saber: pesquisas extras que se mostraram necessárias; e os sempre presentes trabalhos de aprimoramento dos textos recebidos – como adequação dos escritos ao modelo previsto, edição prévia, tradução e redação complementar (se necessárias), revisão geral, preparação de texto e edição final.

Além do Comitê de Pesquisa do Marxismo na América (que derivou do Seminário), foram criadas comissões especiais, dedicadas às tarefas executivas relacionadas ao texto em si: comitês responsáveis pelas traduções, pelas diversas etapas de revisão, e pelo apoio aos trabalhos de finalização editorial.

Por outro lado, com a intenção de pôr à prova, previamente, nossa produção, foi constituído o Conselho Crítico Consultivo, formado por intelectuais-militantes com obras, trajetória política e contribuição ao comunismo marxista já reconhecidas. Convidados de várias partes do mundo, estes conselheiros têm a função facultativa de, sempre que lhes aprouver, criticar, sugerir e propor modificações aos verbetes no prelo – espécie de retoque final para o aperfeiçoamento da obra.

Verbetes: um modelo didático-crítico

Nesta altura do projeto, para além do conteúdo, passamos a nos preocupar com a forma dos verbetes. A intenção do Dicionário era comunicar, dialogar, atrair adeptos – mas sem deixar de, em certas passagens-chave da exposição, imergir mais fundo na polêmica, na contradição, no conceito. O aspecto pedagógico de um texto, afinal, não se dissocia de necessários – e estimulantes – momentos de profundidade analítica. Uma obra destinada à formação inicial marxista deveria abordar, sem reduções manualescas ou dogmatismos, os princípios e conceitos centrais do materialismo histórico; não poderia deixar de falar de temas como dialética, práxis, estrutura, luta de classes, trabalho, modos de produção, acumulação primitiva, teoria do valor, alienação, e sobretudo de tratar das diversas concepções e caminhos já pensados e experimentados para a utopia concreta da revolução – e sem incorrer em sectarismos.

Consideramos portanto imprescindível expor alguns princípios e termos mais eruditos, mas sempre buscando situar o uso da erudição, explicando algo sobre o conceito complexo que fosse apresentado, e em um linguajar acessível. Isto decerto teria de ser feito com muita atenção ao vício ingênuo do prolixo – saída fácil, mas imprecisa que afeta alguns teóricos desacostumados à vida para além dos muros da academia. Evitar hermetismos técnicos, falar uma língua que procurasse o diálogo, abster-se de complexificações para além do necessário se mostrariam entre as mais custosas tarefas dos editores da obra.

O citado modelo de verbete (experimentado nos primórdios, em 2015) foi então posto em discussão. De acordo como este primeiro modelo, o texto teria três partes: uma primeira, biográficodescritiva, em que se apresentaria o contexto histórico e aspectos da vida do marxista, seus estudos, formação política, atividades profissionais e militância; a seguir, um item analítico, ensaístico, que trataria do pensamento do autor a partir de suas obras e realizações; e por fim, uma lista bibliográfica relacionando as obras lidas para a composição do verbete (do próprio autor e de comentaristas). Se este modelo tinha aspectos interessantes e funcionara bem em trabalhos acadêmicos, por outro lado, sua parte central era um tanto aberta, o que poderia dar espaço a divagações teóricas nem sempre palatáveis a um aprendiz.

Então, com o intuito de facilitar a compreensão do teor essencial do pensamento de cada biografado, optou-se por manter o item inicial, e por dividir o segundo item em duas partes: uma primeira, composta por um breve ensaio sobre a concepção marxista do autor, buscaria abarcar suas contribuições teóricas e práticas fundamentais, pondo em relevo as principais ideias políticas e conceitos que aportou ao marxismo; já a segunda, de mais simples compreensão (e que poderia ser lida de modo parcialmente independente das demais), teria um teor bibliográfico e descritivo, dedicando-se a apresentar a obra do autor, estimulando sua leitura mediante resenha dos temas nela contidos – ideias, conceitos desenvolvidos, polêmicas, posições políticas defendidas em cada escrito. Finalmente, como apêndice, um quarto item (deste novo modelo) traria uma lista de livros e textos produzidos sobre o marxista: tanto as referências utilizadas na produção do artigo, como alguma recomendação de obra introdutória.

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Como resultado, os verbetes produzidos mostraram uma interessante diversidade de autores – com histórias e perspectivas próprias. Observando as preocupações expressas nos textos da época, destaca-se a importância dada a aspectos práticos, como a organização da classe trabalhadora, a articulação de redes internacionais conectando movimentos sociais e partidos dos vários países da América, a defesa da melhoria dos padrões de vida da população e o combate às desigualdades.

Em particular, no período do entreguerras, verificamos o crescimento do número de partidos e sindicatos de inspiração marxista, impulsionados por eventos como a Revolução Russa de 1917 e a atuação da Internacional Comunista no continente americano. Multiplicam-se os livros traduzidos, e a tradição filosófica marxista adentra as universidades. Surgem publicações originais, dedicadas à compreensão das características políticas e econômicas nacionais. Temas como o caráter particular daquelas formações sociais erguidas dos escombros do colonialismo europeu, o papel dos componentes indígena e africano no modo de produção, o imperialismo e a luta por uma autêntica emancipação das nações tornam-se parte dos assuntos debatidos em jornais (independentes, em sua maioria), universidades, movimentos sociais e partidos.

Entretanto, seria equivocado imaginar que a propagação do pensamento marxista tenha ocorrido sem contratempos e fricções internas. A cruzada de governos locais contra a criação de partidos e sindicatos de inspiração socialista fez com que, em diversos casos, sua atuação ocorresse na clandestinidade, submetida a proibições arbitrárias, perseguições a militantes, prisões e assassinatos. Por outro lado, a formação de tendências marxistas rivais reverberou no continente americano; e ainda, eventos marcantes do entreguerras, como a crise financeira de 1929 e a ascensão do fascismo na Europa, contribuíram para tensionar o processo de definição das estratégias partidárias, opondo aos proponentes da revolução, aqueles que pregavam a via parlamentar.

Eis a breve história desta obra singular que ora chega paulatinamente ao público, ainda que sua produção prossiga e esteja longe de se considerar terminada (se é que há fim para obras como esta).

Notas

* Os autores deste texto de apresentação são coordenadores do Núcleo Práxis-USP e editores do Dicionário marxismo na América:

Yuri Martins-Fontes L. é escritor, professor e jornalista; doutor em História Econômica (USP/CNRS), bacharel em Filosofia e Engenharia (USP), com pós-doutorados em Ética e Política (USP), e em História, Cultura e Trabalho (PUC-SP). Autor de, entre outras obras: Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui (Alameda/Fapesp, 2018).

Joana Aparecida Coutinho é professora de Ciência Política da UFMA; doutora e bacharel em Ciências Sociais (PUC-SP), com pós-doutorado na UNAM (México), e coordenadora do Grupo de Estudos de Hegemonia e Lutas na América Latina. Autora de, entre outras obras: ONGs e politicas neoliberais no Brasil (Editora UFSC, 2011); e A guerra ideológica (Crítica e Sociedade, 2022).

Pedro Rocha F. Curado é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ; doutor em Economia Política Internacional (UFRJ), bacharel em Ciências Sociais (UFRJ), e pesquisador do Laboratório de Estudos em Segurança e Defesa. Autor de, entre outras obras: A guerra fria e a ‘cooperação ao desenvolvimento’ com os países não-alinhados (UFRJ/EHESS, 2014).

Felipe Santos Deveza é professor de História na rede pública, e de História da América; doutor em História Comparada (UFRJ/UNAM), bacharel em História (UFRJ), com pós-doutorado em História da América Latina (UFF). Autor de, entre outras obras: O movimento comunista e as particularidades da América Latina (UFRJ/UNAM, 2014).

Paulo Alves Junior é professor de Historiografia na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Bahia); doutor em Sociologia (Unesp), bacharel em História (PUC-SP). Autor de, entre outras obras: Um intelectual na trincheira: José Honório Rodrigues, intérprete do Brasil (Editora Dialética, 2021).

Solange Struwka é professora de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia; doutora em Psicologia Social (USP), bacharel em Psicologia (USP), e pesquisadora do Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação. Autora de, entre outras obras: Saúde mental em tempos de pandemia: os imperativos da situação-limite e as tarefas da psicologia (LavraPalavra, 2022).

* Este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo uma apresentação do Dicionário marxismo na América, obra coletiva coordenada por essa organização; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.

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