O marxismo de Astrojildo Pereira

Gráfico, jornalista, ensaísta e crítico literário, foi fundador e dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCB), destacando-se como divulgador do comunismo e por contribuir para a formulação de uma das primeiras interpretações marxistas da realidade brasileira

Por John Kennedy Ferreira e Felipe Santos Deveza

PEREIRA Duarte Silva, Astrojildo (brasileiro; Rio Bonito/RJ, 1890 – Rio de Janeiro/RJ, 1965)

1 – Vida e práxis política

Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu em Rio dos Índios, pequeno povoado do estado do Rio de Janeiro, sendo filho de Ramiro Pereira Duarte Silva e de Isabel Neves da Silva. Seu pai, descendente de portugueses e formado em medicina, foi fazendeiro, comerciante e pequeno industrial, vindo a migrar do interior para Niterói e depois para o Rio de Janeiro.

Em sua cidade natal, Astrojildo estudou inicialmente em escola pública e depois particular. Com o crescimento dos negócios da família, aos 13 anos mudou-se para Nova Friburgo (RJ), matriculando-se no tradicional Colégio Anchieta, dirigido por jesuítas. Influenciado pelo novo ambiente, nutriu o desejo de ser “frade, não padre”, mas logo se desencantou com a fé, ao considerar que seus professores católicos mentiam – e a partir desse momento rompeu com o catolicismo. Nesse colégio terminou o ensino secundário e, sem motivação para continuar os estudos formais, dedicou-se durante um tempo ao empreendimento do pai.

Trabalhou como gráfico e jornalista, além de ensaísta, tornando-se um leitor apaixonado e dono de um “autodidatismo arquiatabalhoado”, como ele mesmo se descrevia. Desde cedo, dedicou-se à militância política. Com um engajamento ativo, de início apoiou a candidatura liberal de Rui Barbosa à Presidência da República (1910); mais tarde, indignado com a ação do Estado contra a Revolta da Chibata (1910), aderiu ao ideário anarquista.

Em 1913, ajudou a organizar o II Congresso Operário Brasileiro. Após o evento, passou a colaborar com diversos órgãos da imprensa anarquista e sindical, e desde este momento passou a ser reconhecido como uma das principais lideranças operárias.

Durante a I Guerra Mundial, Astrojildo notabilizou-se por denunciar o caráter imperialista do conflito, sustentando a neutralidade brasileira. Quando eclodiu a Revolução Russa de 1917, acompanhou as matérias reproduzidas pelas agências franco-inglesas – que chegavam à América Latina através das agências de notícias de países envolvidos na Guerra. Nos noticiários, os “maximalistas”, como foram chamados os revolucionários russos, seriam tratados como agentes da espionagem alemã, como bandidos arruaceiros e, algumas vezes, como sonhadores utópicos ou infantis. Por meio de investigações e de análise crítica, Astrojildo procurou esclarecer o que estava realmente ocorrendo na distante Rússia –governada pelo regime absolutista dos czares –, país que, desde fevereiro de 1917, parecia oscilar entre uma situação de caos, um regime liberal “de tipo ocidental” e algo novo.

Em 1918, sob o pseudônimo Alex Pavel, o até então adepto do anarquismo escreveu uma série de cartas à imprensa dominante da época, em que questionava as premissas difundidas acerca do caráter da Revolução Russa e de personagens como Lênin. Ainda neste ano, com alguns camaradas anarquistas, liderou a tentativa de insurreição armada de trabalhadores no Rio de Janeiro – sendo preso por alguns meses.

Foi neste processo de evolução política internacional que Lênin e os revolucionários marxistas passaram a se tornar a solução para o impasse anarquista – e Astrojildo, como muitos libertários da época, logo viria a ser um fervoroso apoiador dos bolcheviques e da nova Internacional Comunista (IC).

Em março de 1919, após uma greve geral e uma tentativa frustrada de criar um soviete, Astrojildo e seu grupo resolveram aceitar a convocação feita pela recém-criada IC – e fundaram um efêmero Partido Comunista do Brasil. Os principais organizadores deste partido, além dele, foram: José Oiticica, Maria de Lourdes Nogueira, Octávio Brandão e Edgard Leuenroth. Uma interessante característica desta agremiação foi a de que seus líderes eram mais anarquistas do que propriamente comunistas. E o grupo logo se dividiu entre os que apoiavam a Revolução Russa e os que eram críticos do processo.

Conforme se aguçaram as intervenções contrarrevolucionárias na Rússia, bem como as contradições entre as correntes que apoiavam a Revolução Bolchevique, Astrojildo passou a liderar os grupos favoráveis à Rússia Soviética, sobretudo por meio do jornal Spartacus – embora tenha mantido como objetivo a unidade do movimento sindical (que neste momento estava em refluxo). Em 1920, ajudou a organizar o III Congresso da Confederação Operária Brasileira (COB), buscando trazer como modelo ao movimento sindical brasileiro a linha do sindicalismo estadunidense da Industrial Workers of the World (IWW) [Trabalhadores Industriais do Mundo], que era um exemplo de frente única entre anarquistas e socialistas marxistas. Este esforço, porém, não alcançou o resultado esperado.

Após a realização do III Congresso da IC e do contato que estabeleceu com um representante da Internacional, Astrojildo decidiu empenhar-se na formação de um partido comunista. Em 7 de novembro de 1921 foi criado o Grupo Comunista do Rio de Janeiro – o qual estimularia a organização de outros coletivos.

Pouco depois, em 25 de março de 1922, foi fundado o Partido Comunista do Brasil (PCB), que se tornaria a Seção Brasileira da IC (sendo, na década de 1960, renomeado Partido Comunista Brasileiro, devido a questões de registro legal). Contudo, em julho deste ano, o país passou a viver sob estado de sítio – o que duraria até dezembro de 1926 – e, com isto, o novo partido foi logo lançado à ilegalidade.

Com o Levante do Forte de Copacabana (julho de 1922), a insurreição dos tenentes e sua breve tomada de poder em São Paulo (1924), Astrojildo percebeu que a conjuntura da época apontava para um colapso do regime político nascido com a República. Isso levou a que ele e o Comitê Central do PCB buscassem alianças com a juventude militar rebelada – setor da pequena burguesia brasileira que representava e impulsionava certas demandas democráticas. Para tanto, Astrojildo foi até a Bolívia (em 1927) encontrar-se com Luiz Carlos Prestes e propôs ao comandante tenentista a composição de uma aliança política; na ocasião, o Cavaleiro da Esperança e outros militares insurretos leram e discutiram os materiais e livros trazidos pelo comunista.

Já sob orientação da III Internacional, o objetivo do PCB era a construção de um Bloco Operário e Camponês (BOC), com vistas a formar uma frente que permitisse alianças com a pequena burguesia e as demais camadas médias contra o imperialismo inglês e as oligarquias agrárias – rompendo o isolamento típico da matriz anarquista que se concentrava no sindicalismo.

Em 1928, Astrojildo Pereira foi eleito membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC). Às vésperas da Revolução de 1930, o PCB e seu núcleo dirigente sofreram uma intervenção da IC, que acusou Astrojildo e O. Brandão de exercerem uma direção pequeno-burguesa – um desvio direitista e menchevique –, devido à defesa que faziam das possibilidades de alianças com os tenentes e por propagarem a tese conhecida como “Industrialismo versus agrarismo” (que serviu de base para as teses do III Congresso do PCB, em 1927). Ambos seriam, então, afastados e o Partido passaria a priorizar a presença de membros de origem operária em sua direção.

Neste ínterim, em 1931, Astrojildo se casou com Inês Dias, companheira com quem permaneceria por toda a vida. Apartado da militância partidária, passou a se dedicar aos negócios herdados do pai, em Rio Bonito-RJ. Posteriormente, retornaria ao partido de forma mais discreta, colaborando como crítico literário em jornais e revistas.

Em 1939, sob o patrocínio do Ministério da Cultura, organizou-se um evento em comemoração aos 100 anos de Machado de Assis, cuja ênfase estava em transformá-lo, acriticamente, numa unanimidade nacional. Contra todo o ufanismo expresso pela ditadura de Vargas, a Revista do Brasil, dirigida por Otávio Tarquínio de Sousa, editou um número especial em que retratou criticamente Machado de Assis. Além do próprio editor, participaram desta edição intelectuais como Graciliano Ramos, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Mayer, Tristão de Ataíde e Astrojildo Pereira – que apresentou o ensaio “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado”. Na publicação, todos destacaram um Machado ao mesmo tempo brasileiro e universal.

O fim da II Guerra e a desagregação da ditadura do Estado Novo trouxeram um novo ambiente democrático para a sociedade brasileira. Em 1945, Astrojildo escreveu uma carta ao PCB em forma de autocrítica, solicitando seu reingresso ao Partido; atendido em seu pedido, saiu candidato a vereador, obtendo apoios importantes, como o de Graciliano Ramos e Otto Maria Carpeaux. No entanto, não obteve votos suficientes para se eleger intendente.

Em 1946, foi eleito suplente do Comitê Central do PCB e, a partir daí, passou a se empenhar na atividade da análise política e literária. Tornou-se então responsável pela revista Literatura (que circulou entre 1946 e 1948, no Rio de Janeiro) – a qual, dedicada aos estudos literários, promovia também debates políticos.

Dos anos 1950 até o fim da vida, Astrojildo Pereira se voltou à escrita, bem como a participar de conferências e ministrar palestras. Foi nesta última fase, já consagrado como teórico, que ele passou a desempenhar um papel ativo na política cultural, junto à intelectualidade nacional. Animado pelo clima desenvolvimentista que se abria – com os governos G. Vargas (1951-1954) e J. Kubitschek (1956-1961) –, Astrojildo viria a discutir temas como democracia, estética, artes, psicanálise, socialismo e a realidade do Brasil, entre outros. Muitos destes textos foram publicados na Revista Estudos Sociais, que se tornaria um verdadeiro espaço de frente única – ambiente propício para a germinação do pensamento crítico e reflexões sobre o desenvolvimento nacional.

Com o golpe militar de 1964, o marxista foi preso e sua biblioteca saqueada pela polícia. A gravidade da situação acabaria por resultar em uma campanha nacional e internacional por sua liberdade e pelo resgate de seus livros. Cabe aqui mencionar que todas as publicações socialistas ou mesmo progressistas sofreram dura censura neste período (inclusive a Revista Estudos Sociais, com a qual colaborava).

Alguns meses depois, Astrojildo Pereira foi posto em liberdade; curiosamente, sua devoção por Machado de Assis foi utilizada como argumento para a soltura. Porém, com seu estado de saúde já bastante fragilizado pela prisão, morreu em 20 de novembro de 1965. No seu enterro, realizou-se um ato de grandes proporções, que contou com a presença de centenas de personalidades políticas e literárias. Em seguida, o precioso acervo pessoal de sua biblioteca – com documentação e iconografia de grande valor para a história do movimento operário brasileiro – foi transferido secretamente para o Instituto Feltrinelli, em Milão (Itália), sendo devolvido ao país somente com o fim da ditadura.

2 – Contribuições ao marxismo

Astrojildo Pereira teve uma vida intensa e de paixões profícuas: desde jovem se dedicou à causa dos trabalhadores, primeiro como anarquista e depois como organizador partidário e firme militante comunista – vindo a ter uma grande dimensão política para a classe trabalhadora brasileira de sua época.

Estudioso autodidata, foi ensaísta, pesquisador das culturas e das artes, crítico literário, cientista político, jornalista e, acima de tudo, um engajado revolucionário. Pouco afeito a sectarismos, foi um pensador marxista intelectualmente amplo. Sua consistente formação teórica e política reverberou em sua obra: buscou amplas fontes para entender o Brasil e o mundo, como o demonstra, por exemplo, sua contribuição às primeiras formulações políticas marxistas da realidade nacional (quando na direção do PCB), e sua original pesquisa sobre a obra machadiana. Dedicou-se intensamente à divulgação do pensamento comunista, escrevendo textos em que trata de temas como a Revolução Soviética, a teoria marxista, a realidade brasileira e a construção do PCB.

Ainda moço, apaixonou-se pela literatura de Machado de Assis e veio a ser um dos mais importantes conhecedores e críticos da obra do “bruxo do Cosme Velho” (como o escritor era conhecido). A este respeito, Euclides da Cunha, em “A última visita” (1908), narra a visita de um desconhecido ao leito de morte de Machado: o rapaz entra no quarto do mestre, beija sua mão e sai, silenciosamente, como entrou; este gesto foi sintetizado pelo cronista como um momento memorável no qual o “coração” do jovem “bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade”. Vinte anos depois, soube-se que aquele homem era Astrojildo Pereira.

Em sua correspondência escrita entre 1917 e 1918, Astrojildo analisou a Revolução Russa e seus líderes, desenvolvendo uma argumentação cuja consistência destoa dos artigos publicados na imprensa dominante da época, os quais eram meras reproduções das notícias de agências anglo-francesas. Nessa série de textos, que estão entre as primeiras interpretações brasileiras da Revolução Bolchevique, ele expôs as mentiras e incoerências afirmadas por estes meios conservadores sobre a Rússia e sobre Lênin, afirmando que os russos estavam levando a cabo uma “verdadeira revolução”, na qual se dava uma efetiva “transformação violenta e radical de sistemas, de métodos e de organismos sociais”. No entanto, somente o Jornal do Brasil publicou uma única de suas cartas. O autor resolveu então reuni-las em uma pequena brochura, publicando-as por conta própria e difundindo-as no meio operário.

Durante o período de 1922 a 1930, o núcleo dirigente do PCB, composto por Astrojildo, Octávio Brandão e Paulo Lacerda, dedicou-se a difundir noções do marxismo-leninismo para a classe trabalhadora brasileira: fundaram editoras, jornais, revistas, traduziram e publicaram obras ainda inéditas de Marx, Engels e Lênin, além de materiais da IC.

Ao longo da década de 1920, Astrojildo, Brandão e Lacerda elaboraram uma das primeiras interpretações marxistas das particularidades da formação social brasileira. Com base no livro Agrarismo e industrialismo (1926) – escrito por Brandão, com colaboração da direção do PCB –, Astrojildo, então secretário-geral do Partido, redigiu um relatório sobre a situação brasileira, o qual seria enviado ao Secretariado Sul-Americano da IC e publicado na revista Correspondência Internacional (1928), servindo de tese para o III Congresso do PCB (1929). A ideia exposta na obra assinada por Brandão afirmava que as classes dominantes no Brasil estavam divididas entre uma facção agrarista (ligada ao capital inglês) e outra industrialista (relacionada ao capital estadunidense). Embora o texto traga uma importante reflexão – sustentada por dados consistentes, em um esforço por aprofundar as particularidades brasileiras –, o faz de forma ainda esquemática, o que serviria para sustentar ilusões acerca do papel transformador de setores das classes dominantes brasileiras. De acordo com a avaliação dos dirigentes do PCB, a monocultura do café entraria em colapso, o que provocaria novas rebeliões, como a do movimento tenentista (em 1928); com isto, os rebeldes tenderiam a se dividir, aliando-se ou com a burguesia industrial nascente ou com o novo movimento operário.

Astrojildo e o Comitê Central do PCB visavam ao crescimento do Partido como protagonista social – e com efeito obtiveram apoios na sociedade em ebulição da época. Sua estratégia era a de organizar um movimento proletário mais autônomo, com maior participação no processo histórico, o que possibilitaria realizar uma revolução democrático-burguesa soberana e radical – em uma evolução de acontecimentos que faria com que as classes médias, por sua vez, rompessem com o latifúndio e o imperialismo. Contudo, caso o movimento não lograsse alcançar seus objetivos, o desenrolar dos eventos poderia conduzir a uma transição “por cima”, em que as camadas médias se aliariam com a burguesia e as oligarquias agrárias – constituindo um regime antipopular (o que, afinal, acabaria ocorrendo, no Estado Novo de Getúlio Vargas).

Entretanto, a inexperiência dos jovens fundadores do PCB os levaria à interpretação de que a rebelião da pequena burguesia (o movimento tenentista) significava uma radicalização da Revolução Brasileira rumo à revolução proletária; enquanto, por outro lado, a IC debatia as complicações a que poderiam levar tais crenças na pequena burguesia e nas ditas “burguesias nacionais” – apontando como exemplo as alianças malogradas em países como a China do Kuomintang de Chiang Kai-shek e o governo pós-revolucionário de Plutarco Elías Calles, no México (nas quais os comunistas seriam perseguidos). Neste embate, em 1930, Astrojildo e Brandão – os principais dirigentes do PCB – foram afastados, sendo acusados de representar um “desvio pequeno-burguês”.

Afastado da direção do Partido, Astrojildo passou então a atuar intensamente como jornalista e crítico literário, escrevendo para diversos veículos. Nestes textos, destaca-se seu empenho para a difusão do marxismo, inserindo este pensamento – que defendeu como ferramenta política e teórica necessária para a compreensão da realidade – nos debates da época.

Astrojildo, em suma, sonhou um Brasil alfabetizado, desenvolvido, soberano e socialista – e lutou toda sua vida por este ideal.

3 – Comentário sobre a obra

Astrojildo Pereira escreveu diversos artigos e livros nos quais tratou de questões teóricas de seu tempo – analisando problemas do Brasil, em uma perspectiva revolucionária –, além de se dedicar à crítica literária.

Sua primeira importante contribuição ao debate político foi o livreto A Revolução Russa e a imprensa (S.l.: s.n., 1918), escrito entre o fim de novembro de 1917 (um mês após a Revolução de Outubro) e fevereiro de 1918, assinado com o pseudônimo Alex Pavel, em que o ainda anarquista procurou interpretar os acontecimentos da Revolução Bolchevique. Neste pequeno texto, ele utilizou como instrumento de investigação a análise crítica de todos os dados a que teve acesso, explicando o significado da direção de Lênin, o que era o Partido Bolchevique e como se dera a construção do primeiro Estado dirigido pela classe trabalhadora.

Entre 1919 e 1930, Astrojildo produziu vários artigos em defesa da Revolução Soviética, além de textos voltados à difusão popular do marxismo e sobre a fundação e construção do PCB. Isto foi registrado em documentos partidários e em artigos publicados em periódicos brasileiros (principalmente A Classe Operária, em 1925), bem como na revista teórica da IC (La Correspondência Sudamericana, entre 1926 e 1930). Estes escritos foram mais tarde reunidos no livro Construindo o PCB: 1922-1924 (1962), em que trata de temas como a legalidade do PCB e a liberdade política nacional.

Tais discussões se mostram também nos debates sobre a formação do Brasil e a conjuntura da década de 1920, registradas no livro de O. Brandão, Agrarismo e industrialismo (1926) – o qual apresenta a interpretação da realidade nacional realizada pelos então dirigentes do PCB (contidas nas teses para o II e III Congressos do Partido).

Em URSS-Itália-Brasil (Rio de Janeiro: Editora Alba, 1935), livro que se considera sua obra de estreia, Astrojildo reúne textos escritos elaborados entre 1929 e 1934. Cabe aqui ressaltar que, em 1930, Astrojildo e Octávio Brandão estavam em Moscou e sofreram duras críticas pela aliança do PCB com os tenentistas (tendo sido vistos como “pequena burguesia revolucionária”). A publicação está dividida em três partes.

A primeira é sobre a URSS, reunindo cartas que o autor escreveu quando morava ali (a maioria de 1929) e artigos que redigiu no período de 1931 a 1933, quando já não mais pertencia às fileiras do Partido. Nesta parte, aborda questões da economia e da luta de classes.

Na segunda parte do livro, ele trata da Itália fascista. Mostra como os fascistas tentaram se impor como uma terceira via, pretensamente nem capitalista nem socialista, projeto fadado ao fracasso. Denuncia as diretrizes e a incoerência própria do fascismo, acompanhando o entendimento da IC de que o fascismo é a “expressão política” de uma “ditadura direta” – ideologia demagógica que se disfarça sob um discurso pretensamente “nacional”, sendo seu objetivo primordial o de esmagar pelo terror o movimento revolucionário da classe trabalhadora, em especial sua vanguarda comunista. E demonstra ainda o fracasso da economia fascista, apresentando seu Estado como regressista e parasitário – como a parte mais agressiva do capital.

A terceira e última parte abarca seus artigos sobre o Brasil: “Manifesto da contrarrevolução”, de 1931, e “Campo de batalha”, escrito entre 1933 e 1934. No primeiro, aborda o perigo das Legiões – principalmente a paulista, que reivindicava naquele momento uma “brasilidade” –, mostrando a aproximação deste grupo com Plínio Salgado Filho, adepto de ideias fascistas. Já no último dos escritos, Astrojildo analisa o Brasil pós-1930, retratando-o como um país economicamente dependente do imperialismo; explica também o conflito entre as grandes potências por uma nova divisão do mundo, afirmando que essa luta levaria a uma guerra mundial – como, de fato, aconteceu (e vale notar que este texto, elaborado nos anos 1930, tem ainda bastante atualidade).

Na década seguinte, publica Interpretações (Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1944). A obra está dividida em três partes: “Romances brasileiros”; “História política e social” e “Guerra após guerra”. A primeira das partes contém ensaios inovadores, introduzindo a literatura em torno da construção de uma ideia de nação; aqui encontramos novamente o “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado” (1939), ensaio que abre a obra. Noutro ensaio – “Romancistas da cidade: Manuel Antônio de Almeida, Rui Barbosa, Joaquim Manuel de Macedo e Lima Barreto” –, analisa estes autores e suas obras a partir da transformação do ambiente da cidade do Rio de Janeiro e do país como um todo; ao interpretar o processo de mudanças de hábitos e costumes, mantendo como fio condutor os próprios autores e seus escritos, ele observa a passagem da sociedade estamental à sociedade burguesa. Já em “Espelho da família burguesa”, o autor comenta o romance Vertigem, do romancista Gastão Cruls (1888-1956); no ensaio, Astrojildo destaca como Cruls, na arquitetura de seu romance, descreve os “tipos da família burguesa”, qual uma espécie de psicologia de classe – a “psicologia da gente burguesa de qualquer país”.

A segunda parte de Interpretações – “História e política social” – reúne textos como: um comentário ao livro Populações meridionais do Brasil (1922), de Oliveira Viana; “Rui Barbosa e a escravidão” (1944); e “Uma biografia do Padre Feijó”.

Já a terceira e última parte da obra – “Guerra após guerra” – destaca-se pelos escritos: “A guerra, a Bíblia e Hitler”; e “Posição e tarefas da inteligência” (de 1944). Vale destacar este último artigo, em que o marxista explica que o processo de abertura em direção a um regime com mais espaços democráticos no Brasil não poderia ficar restrito a aspectos políticos, mas deveria abarcar também a economia, a sociedade e a cultura; neste sentido, aponta para o fim do analfabetismo e ampliação de escolas e universidades, buscando construir uma política ampla que alcançasse todos os setores da sociedade e rompesse com a pesada herança escravagista e oligárquica. Com análise aprofundada e ampla, este texto, que mantém sua atualidade, viria a se estabelecer como um cânone, vindo a ter importância na ação alfabetizadora de Paulo Freire, nos trabalhos dos teatros paulistas Oficina e de Arena, e no movimento Cinema Novo brasileiro.

Vale, ainda, apresentar o livro Machado de Assis (Rio de Janeiro: Livraria e Editora São José, 1959). Na obra, Astrojildo foge do dogma artístico do “realismo socialista”, que exigia que a produção artística expressasse uma opção política proletária a priori – com um posicionamento explícito. Assim, apresenta-nos um Machado bem distinto da leitura que faziam dele na época: absenteísta, estrangeirado na política e na sociedade, favorável ao abolicionismo e crítico contumaz da sociedade. Destaca também a ascensão de Machado por meio do trabalho: um homem que, de origem pobre, nascido no morro, de operário se tornaria um dos maiores escritores brasileiros. Para Astrojildo, Machado, ao exaltar as coisas brasileiras, nacionais, ofereceu aos escritores do país uma ideia de política cultural – sintetizada em sua abordagem crítica, diversificada e que quebra a ideia de que a literatura seria circunscrita ao entretenimento.

Em 1962, na ocasião das comemorações dos 40 anos do PCB, Astrojildo reuniu importantes textos seus – que integram parte da bibliografia fundamental dos primeiros anos do Partido –, publicados como Formação do PCB: 1922-1928.

No ano seguinte, veio à luz Crítica impura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963), livro que tem um título emblemático. Nele, Astrojildo parte do princípio de que o trabalho do escritor exige tomar partido; se não pode existir uma “literatura pura”, tampouco há uma “crítica pura”. Os adeptos da crítica impura não acreditam na “arte pela arte” – ou seja, uma arte superficial, que desconsidere questões políticas e ideológicas. Tratava-se de uma resposta à publicação de Crítica pura (1938), de Henrique Abílio. A obra está dividida em três partes. A primeira, “Ensaios e notas de leitura”, reúne artigos sobre Eça de Queiroz, Lima Barreto, José Lins do Rego, Machado de Assis, Monteiro Lobato e José Veríssimo, entre outros, incluindo também texto sobre o movimento sindical no Brasil. A segunda parte, “Testemunhos sobre a nova China”, contém ensaios como: “China de hoje”, “China sem muralhas”, “Viagens ao planeta China”, “A nova China”, e “Flor de Loto”. A terceira parte, “Cultura e sociedade”, reúne vários escritos que dizem respeito a questões que se colocavam à época (e continuam atuais), tais como: “Poesia e sociedade”; “Bicentenário da Enciclopédia francesa”; e “Ciência e sociedade”.

Postumamente, reunindo artigos de sua autoria – elaborados e já publicados em distintas épocas de sua vida – foi editado Ensaios históricos e políticos (São Paulo: Alfa-Ômega, 1979), livro que conta com apresentação de Heitor Ferreira Lima e reúne cinco ensaios: “Formação do PCB” (reedição da obra de 1962); “Sociologia e apologética” (1929), “Rui Barbosa e a escravidão” (1944); “Manifesto da contrarrevolução” (1931); e “Campo de batalha” (1933-1934).

Na rede, sua obra pode ser lida em portais como: Centro de Documentação e Memória da UNESP (www.cedem.unesp.br); e Marxismo 21 (https://marxismo21.org).

4 – Bibliografia de referência

ARIAS, Santiane. “Astrojildo Pereira e a Revista Estudos Sociais. Revista Novos Rumos, n. 44, 2005.

BELOCH, Israel. “Astrojildo Pereira”. Marxismo 21. Disp: https://marxismo21.org.

BUONICORE, Augusto. “Agrarismo e industrialismo: o primeiro encontro do marxismo com o Brasil”. Vermelho, jun. 2006. Disp.: https://vermelho.org.br.

COTRIM, Renata Aparecida. Memória militante: a atuação das redes de preservação documental na salvaguarda dos arquivos das classes subalternas. Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, S. Paulo, 2022.

DEL ROIO, Marcos. “A trajetória de Astrojildo Pereira (1890-1965)”. Marxismo 21, 2015. Disp: https://marxismo21.org.

______. “Astrojildo Pereira: fundador do marxismo no Brasil”. Marxismo 21, 2012. Disp: https://marxismo21.org.

DEVEZA, Felipe.Astrojildo Pereira e a Revolução Russa de 1917”. Revista Convergência Crítica, n. 10, 2017.

FEIJÓ, Martin Cezar. Um revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. São Paulo: Boitempo, 2022.

OLIVEIRA, Ilka Maria de. “Astrojildo Pereira nos bastidores da História Literária”. Letras de Hoje, v. 30, n. 3, 2013. Disp: https://revistaseletronicas.pucrs.br.

RIDENTI, Marcelo. “Astrojildo Pereira”. Margem Esquerda, n. 39, 2022. Disp.: https://aterraeredonda.com.br.

VIANNA, Mary de A. G. “Astrojildo Pereira, um revolucionário”. Em: PEREIRA, Astrojildo. URSS-Itália-Brasil. São Paulo: Boitempo, 2022.

Notas

* John Kennedy Ferreira é professor de Sociologia na UFMA; bacharel em Sociologia e Política (FESP), mestre em Ciência Política (PUC-SP) e doutor em História Econômica (FFLCH-USP). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa de Ontologia do Pensamento Social da UFMA e é pesquisador do Núcleo Práxis-USP. Entre outras obras, é coautor de: Primeiras leituras da filosofia de Marx (CRV, 2022).

* Felipe Santos Deveza é professor de História na rede pública e professor universitário de História da América; bacharel em História (UFRJ) e doutor em História Comparada (UFRJ/UNAM), com pós-doutorado em História da América Latina (UFF). É coordenador do Núcleo Práxis-USP e editor do Dicionário marxismo na América. Autor de, entre outras obras: O movimento comunista e as particularidades da América Latina (UFRJ/UNAM, 2014).

* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes, Joana A. Coutinho e Vânia Noeli Ferreira de Assunção, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.