A tribo, o Estado e a guerrilha no Afeganistão

Líderes tribais, senhores da guerra, guerrilhas e agentes do Estado conformam, há décadas, um tabuleiro político dinâmico marcado por relações que se revezam entre o clientelismo e o conflito aberto

 

Por Pedro Curado*

 

A queda de Cabul representou não somente o fim de um governo alinhado aos Estados Unidos na Ásia central, mas evidenciou a fragilidade conceitual dos programas de “construção nacional” (nation-building) aplicados à periferia global.

Ashraf Ghani, o agora ex-presidente afegão, é, ele próprio, um especialista no assunto. Em seus antigos cursos ministrados nas universidades estadunidenses de Beckley e Johns Hopkins, ensinava que a ajuda externa para os “Estados falidos” deveria fomentar a construção de estruturas estatais que emulassem aquelas existentes no Ocidente “desenvolvido”.

Os problemas por detrás desse projeto foram reconhecidos pelos próprios agentes estadunidenses, como ficou demonstrado no escândalo de 2019 conhecido como “Afghanistan papers”. Ali, relatórios desclassificados do SIGAR, a agência estadunidense responsável por destinar fundos para a reconstrução do Afeganistão, evidenciavam tanto a dimensão ideológica dos programas adotados (eram, basicamente, irrealizáveis), como também o incômodo daqueles operadores que, no Afeganistão, viam-se constrangidos a aplicar planos bem ajustados a teorias forâneas, mas em descompasso com aspectos particulares da realidade econômica e política afegã.

Recentemente, a mesma incompreensão do que ocorre no Afeganistão foi manifestada pelo presidente Joe Biden, ao culpar os afegãos por se recusarem a defender o próprio país contra o Talibã e, assim, permitir a rápida queda de Cabul. Também ali, Biden parece projetar no Estado afegão a imagem dos Estados nacionais ocidentais, isto é, uma organização política forte e centralizada, na qual as decisões adotadas pela elite estatal atingem efetivamente o conjunto da sociedade submetida àquele poder. Tal Estado estaria apto a mobilizar os recursos disponíveis em suas estruturas para garantir o “monopólio da violência legítima sobre o território”, como diria Max Weber.

Mas esse modelo jamais existiu no Afeganistão, e a ocupação estadunidense não logrou contribuir para a transformação de um ambiente marcado pela ausência de uma unidade política capaz de sub-meter as diferentes forças a um só poder. Assim, líderes tribais, senhores da guerra, guerrilhas e agentes do Estado conformam, há décadas, um tabuleiro político dinâmico marcado por relações que se revezam entre o clientelismo e o conflito aberto.

Cada um desses atores age em grande medida de forma bastante autônoma, posto que na prática “governam” fatias da população e do território afegão, e dispõem de recursos financeiros e militares próprios. Por vezes, associam-se entre si, quando o momento demonstra ser conveniente, mas os arranjos cooperativos facilmente se transmutam em rivalidades quando as circunstâncias mudam.

O sistema tribal afegão

A distribuição de uma população majoritariamente rural (cerca de 74% do total) em um território geograficamente acidentado explica, em certa medida, as dificuldades para se romper com o ambiente de fragmentação política. O país apresenta, grosso modo, três grandes zonas ecológicas, sendo elas o deserto (na maior parte da região sul, em uma faixa ao norte e ao leste, próximo à fronteira com o Paquistão), as estepes (entre as zonas desérticas e as montanhas) e, finalmente, a região de montanhas, formada pelo Inducuche (“assassina de hindus”), uma ramificação da cordilheira do Himalaia.

A maior parte da população está dispersa em pequenos vilarejos pobres situados em enclaves montanhosos de base econômica pastoril e limitada agricultura. A geografia acidentada, somada à existência de comunidades dispersas em grupos pequenos e em zonas relativamente distantes e de difícil acesso favoreceu a consolidação de lideranças políticas locais com significativa autonomia frente aos comandos da capital. As comunidades do interior reproduziam suas formas de existência apoiadas em laços de parentesco e vínculos étnicos, respeitando hierarquias locais tradicionalmente constituídas e culturalmente legitimadas.

As principais etnias que compõem a população afegã são os pashtuns (40% do total), tadjiques (25%), hazaras (10%), uzbeques (10%), além de minorias como turcomanos, baluchis, nuristaneses, quirquizes e cazaques. Cada grupo étnico é composto por diferentes tribos e clãs que interagem entre si e compartilham referências culturais, linguísticas e religiosas. A etnia pashtun, que se estende também pelo Paquistão, está dividida em quatro grandes confederações (batani, sarbani, ghourghusthi e karlani) que englobam, cada uma, diferentes unidades tribais. O elemento cultural a unificar todas elas é o pashtunwali, o código de conduta e de honra pashtun.

Thomas Barfield, no livro “Afghanistan: a cultural and political history” (2010), chama a atenção para que as confederações tribais pashtun tradicionalmente rivalizem entre si pela obtenção de postos de chefia no Estado afegão. Ao longo do século XX, a maior parte das autoridades políticas afegãs saiu da tribo pashtun “durrani”, situada majoritariamente na região de Candaar e vinculada à confederação tribal pashtun “sarbani”. Segundo Barfield, a razão da prevalência de membros de certas tribos no cenário político nacional tem a ver também com aspectos culturais.

Por exemplo: a tribo dos “durrani” aceita hierarquias e tem historicamente fortes conexões com as cidades e o comércio, além do acesso a terras irrigadas, graças ao apoio do poder em Cabul. Em contrapartida, a tribo pashtun “guilzai” possui uma organização social mais igualitária, e tradicionalmente se recusa a reconhecer autoridades forâneas, reivindicando um autogoverno. Como resultado, a maior autonomia local vem acompanhada do isolamento político em relação ao centro, e se reflete no baixo desenvolvimento econômico, na frágil educação e no provimento mínimo de serviços públicos.

Tal sistema tribal afegão não deve ser compreendido como um vestígio de um passado distante, mas uma forma alternativa de organização política, adaptada à topografia e flexível a ponto de acompanhar as mudanças no ambiente cultural. As tentativas de criação de um Estado burocrático moderno ao longo da ocupação dos EUA esbarraram, portanto, em forças centrífugas que historicamente mantiveram zonas de povoamento periférico, resistentes à centralização do poder na capital.

Os senhores da guerra

Nas últimas décadas, o ambiente social e cultural das zonas periféricas foi fortemente impactado pelos ciclos de guerra. Como resultado, formaram-se lideranças militares que souberam manter-se no poder de certas regiões, mesmo em períodos de paz. Na guerra contra o governo afegão apoiado pelos soviéticos, toda uma nova geração de combatentes mujahidin consolidou-se no controle de zonas rurais. No primeiro governo do Talibã, entre 1996 e 2001, houve tentativa de desmantelá-los, sem sucesso.

Tais senhores da guerra não eram propriamente organizações, mas sim líderes militares que mantinham sua própria base política na região de origem e entre aqueles da mesma etnia. As comunidades a eles submetidas tendiam a ver sua presença como condição necessária para a existência de segurança e um ambiente próspero. A importância política dos senhores da guerra crescia conforme a região fosse mais fragmentada e desconectada da capital.

Romain Malejacq, no livro “Warlord Survival” (2019), enfatiza a flexibilidade dessas lideranças militares para adaptarem-se às mudanças na conjuntura política e em suas redes de alianças tribais. Para se manterem relevantes mesmo diante das transformações no ambiente político, buscavam reforçar sua importância nos níveis local, nacional e internacional.

Isso ocorria através da provisão de bens monopolizados por eles, como segurança, lealdade, votos, oportunidades políticas e econômicas, etc. Com isso, os senhores da guerra tornaram-se atores políticos incontornáveis, tanto por seus meios militares como por conta de sua capacidade de fazer convergir em torno de sua figura diferentes fontes de poder, como o militar, político, ideológico e social. Ainda segundo Malejacq, os senhores da guerra fortemente estabelecidos em seus domínios rurais e com suas redes de contato e apoio representam um forte empecilho a qualquer tentativa de centralização do poder que parta da capital.

Esta última dimensão difere o Talibã dos senhores da guerra tribais, que controlavam regiões do país: desde a origem do conflito, a guerrilha se apresentou como uma forma de poder alternativo ao governo afegão, candidata ao poder central em Cabul. A despeito das origens associadas à etnia pashtun, o Talibã representa, em certa medida, um movimento de afronta à fragmentação política do sistema tribal afegão. Em outras palavras, o grupo evoca um nacionalismo religioso como traço comum agregador acima das distinções étnicas e rivalidades tribais que permeiam a sociedade civil.

A guerrilha Talibã

Ao longo dos anos, resistência do Talibã foi possível graças a uma série de fatores:

1) trata-se de uma organização centralizada e profundamente hierarquizada, com eficiente transmissão de informação e ordens, uma cadeia de comando verticalizada e linhas de apoio logísticas;

2) o grupo manteve-se fortemente militarizado, com soldados remunerados e obtendo armamentos por meio de contrabando internacional ou através de sequestro de armas do exército afegão;

3) a costura de uma rede de apoio internacional extraoficial em países como Arábia Saudita, Paquistão, Catar, Emirados Árabes Unidos e Irã;

4) a manutenção de eficientes fontes de financiamentos, através de um complexo sistema tributário;

5) a implantação de um governo de facto nos espaços sob o domínio da guerrilha.

O esboço do que vem a ser um governo Talibã pode ser visto nas aldeias e vilarejos do interior já controlados pelo grupo. Há um governador do Talibã para cada distrito sob seu domínio. Ao conquistar uma nova região, a guerrilha envia uma carta com as novas leis para todos os chefes de aldeias. Depois, monta tribunais e julga conforme as leis comunicadas pelas cartas. Os tribunais oficiais, quando existem, são abolidos. Uma interpretação particularmente rigorosa da sharia define regras comportamentais e se aplica a todos.

Além de ser um regime conhecido por forte intervenção no campo dos costumes, o Talibã também provê certos bens públicos. Em seus territórios, criou centros de estocagem para frutas e legumes e programas voltados para a modernização das atividades agrícolas, como a irrigação de canais. Os hospitais locais passaram ao controle do grupo, e havia cooperação entre a guerrilha e o antigo governo em Cabul para facilitar a circulação de medicamentos. Há também controle direto sobre as escolas, nas quais professores do Estado eram substituídos por membros da guerrilha. As escolas são percebidas pelo Talibã como instituições particularmente estratégicas, pois necessárias para a formação de novos combatentes e aliados do grupo.

Durante o período em que exerceu um governo paralelo no Afeganistão, o Talibã gozava de certo apoio das comunidades em que estava instalado. Isso ocorria porque as instituições do governo de Cabul, quando existiam, eram percebidas como corruptas, injustas ou incapazes de manter um ambiente de segurança. O relativo apoio da sociedade civil foi um elemento importante para fazer com que o grupo sobrevivesse ao longo dos anos de guerra.

Um outro fator relevante a ser considerado diz receito às fontes de receitas. Ao longo do tempo, aplicavam-se tributos de diferentes tipos. Há o “zakat”, um tributo de inspiração religiosa cobrado junto aos agricultores (cerca de 10% do valor da colheita). Havia também impostos sobre a terra, o comércio lojista, empresas de telefonia móvel e telecomunicações, bens em circulação, fornecimento de energia, exploração de minérios, etc.

Entretanto, a maior parte das receitas advinha de atividades ligadas à produção e comércio de ópio. Tributos são cobrados em diferentes etapas da produção. A participação anual do Talibã no comércio de ópio rendia, até o ano passado, entre 100 e 400 milhões de dólares anualmente, segundo um relatório das Nações Unidas de 1 de junho de 2021.

Segundo Mansfield, no livro “A state built on the sand: how opium undermined Afghanistan” (2016), existe um papel político e social exercido pela produção de ópio nas zonas rurais. No campo, o ópio é uma das únicas culturas em que os agricultores podem garantir pagamentos adiantados, constituindo sistemas de crédito local de grande eficiência. Tais sistemas contribuem para reduzir os efeitos negativos de choques como o aumento dos preços dos alimentos ou doenças familiares, que afetam principalmente as famílias mais pobres.

Uma das incógnitas quanto ao novo governo do Talibã será saber como a busca pelo reconhecimento da comunidade internacional poderá se coadunar com sua participação direta no mercado global de ópio.

Por fim, vale ressaltar o envio de fundos feitos por instituições de caridade ligadas a entidades religiosas, de países como o Catar, Emirados Árabes e Arábia Saudita, principalmente. Versando ao Talibã cerca de 200 milhões de dólares anuais, no somatório, e mantidos com surpreendente regularidade, tais receitas demonstram como a existência de redes de apoio internacionais foram importantes para que a resistência pudesse ser mantida.

O Talibã e as forças centrífugas do Estado afegão

No momento derradeiro da derrota do governo afegão, as forças armadas contavam com maior volume de soldados (os dados variam entre 150 e 300 mil) armados com equipamentos e armas modernas fornecidas pela ocupação estadunidense, além de uma força aérea. Entretanto, observadores locais apontam problemas na formação dos soldados, salários em atraso, ausência de conhecimento técnico para operar equipamentos sofisticados e deserções em massa. A isso somava-se o fato de sua imagem estar atrelada àquela do governo de Cabul, visto como profundamente corrupto, eleito por fraude e submisso a interesses forâneos.

Nas cidades principais, como Cabul, Candaar e Herat, a chegada do Talibã foi acompanhada de fugas em massa de setores da sociedade civil receosos com o novo regime. O contraste entre a cultura tradicional e religiosa do campo, com o espírito mais cosmopolita e liberal das maiores cidades, representa um desafio para as estratégias de comunicação e gestão pública da antiga guerrilha, agora transmutada em governo.

No momento da queda de Cabul, a estrutura organizacional do Talibã contava com cerca de 75 mil soldados e mesclava táticas de guerra convencional com estratégias de guerrilha (como emboscadas, bombas suicidas e ataques repentinos e fortes). O avanço tornou-se possível graças às costuras políticas feitas com os senhores da guerra. Estes aceitavam adentrar numa guerra liderada pelo Talibã em troca de retribuições políticas e militares acordadas com a guerrilha. Aqueles que mantinham-se independentes ou ligados, por laços clientelistas, às forças do governo afegão, foram quase inteiramente derrotados.

Uma vez no poder, o Talibã irá enfrentar o mesmo problema relacionado à ausência de capacidades estatais infraestruturais em zonas ecológicas afastadas do centro político e submetidas a lideranças tribais. As forças centrífugas do Estado afegão, fortemente relacionadas à demografia, à geografia e à economia de base rural, continuarão a jogar contra um programa mais agressivo de centralização do poder administrativo e militar nas mãos da elite estatal.

Em outras palavras, o Talibã terá de lidar com senhores da guerra com fortes vínculos tribais e comando local, espalhados pelo interior do país. Tal configuração geopolítica fez com que o antigo governo de Ashraf Ghani mantivesse seu poder de fato limitado a algumas das principais cidades, e necessitasse costurar acordos políticos com os senhores da guerra para manter algum tipo de penetração em zonas rurais.

Para o Talibã, acordos que seguem o formato adaptado de uma confederação tribal são uma forte possibilidade para o futuro. Líderes tribais sabem que a fragmentação total do território é ruim para todos, pois isolados todos se enfraqueceriam. Deve haver, portanto, algum grau de cooperação para ações em nível nacional, especialmente porque os recursos da comunidade internacional somente podem ser obtidos caso exista uma representação nacional para lidar com o mundo exterior, mesmo que seja apenas para receber dinheiro e redistribuir. O arranjo entre as lideranças tribais para composição com o governo supratribal pode ser definido como um casamento arranjado, e não um caso de amor. Historicamente, grupos étnicos afegãos sempre cooperaram uns com os outros, sem que o apreço entre si fosse fator decisivo.

Restará saber se a estratégia do novo governo afegão será dar continuidade às fracassadas tentativas de construção de um poder estatal centralizado, ou construir uma solução alternativa para o país. Uma saída poderia estar voltada para o fortalecimento de estruturas de gestão estatal, que mesclem elementos típicos de uma confederação de tribos, mas que incorporem também elementos do Estado moderno, especialmente aqueles vinculados à consolidação de uma burocracia capaz de administrar as tensões de diferentes segmentos da sociedade, fornecer bens públicos comuns, garantir a segurança e prover canais oficiais de interlocução com o mundo exterior.

*Pedro Curado é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e membro do Núcleo Práxis da USP

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *