Escritor, jornalista, editor, cientista social, filósofo e dirigente comunista peruano, foi pioneiro de um marxismo propriamente americano – trazendo ao centro do debate marxista temas como o do comunismo indígena e da necessária relação entre as posturas realista e romântica na construção revolucionária Por Yuri Martins-Fontes* MARIÁTEGUI, José Carlos; “Amauta”, “Juan Croniqueur” (peruano; Moquegua, 1894 – Lima, 1930) 1 – Vida e práxis política Nascido no Sul do Peru, José Carlos Mariátegui La Chira se mudou ainda criança para Huacho, cidade próxima à capital. Seu pai, funcionário público, cedo abandonou a família, cabendo à mãe, María Amalia La Chira Vallejos – costureira católica de ascendência indígena – criar os três filhos. Em 1902, Mariátegui sofreu um acidente na escola e fraturou o joelho – episódio que evoluiu mal, deixando-o manco. Entretanto, no tempo em que esteve internado em um hospital de Lima, dedicou-se a ler diversos livros a que teve acesso e a estudar francês – dando assim um primeiro impulso a sua extensa formação, que viria a ser sobretudo autodidata. Já em 1909, começou a trabalhar com tipografia no jornal La Prensa. No prelúdio da I Guerra Mundial, debutou na escrita, com crítica literária e versos, para logo publicar seus primeiros artigos jornalísticos com temas políticos. Sob o pseudônimo de Juan Croniqueur, satirizou a frivolidade limenha, demonstrando um amplo conhecimento que o aproximou de círculos intelectuais e artísticos de vanguarda, bem como do movimento operário (de linha anarquista) que se gestava desde o fim do século, trazido à América por imigrantes europeus. Destacando-se como jornalista, Mariátegui pouco depois se tornou cronista do jornal El Tiempo (1916), no qual passou a se dedicar ao embate político, denunciando a falsidade da “democracia mestiça”: um sistema demagógico que servia às classes dominantes como fonte de “divertimento”, desviando a atenção popular do fato de que a burguesia da região costeira, aliada aos grandes proprietários rurais do interior, tornavam o Peru cada vez mais um “setor colonial” do imperialismo estadunidense. Seus textos deste período se desenvolveram durante uma época de forte alta nos preços dos alimentos e consequente descontentamento popular, em que crescia a agitação dos trabalhadores – e entrava em crise o domínio político da oligarquia (financeira, extrativista e agroexportadora). Já adepto do socialismo, o autor apoiou greves e enfrentou a elite dirigente limenha. Em 1918, teve início em Córdoba (Argentina) um movimento pela Reforma Universitária, que depois abrangeria todo o continente; entusiasmado, Mariátegui afirmou ser este o “nascimento da nova geração latino-americana”. Ainda neste ano, participou da fundação da efêmera revista Nuestra Época, outro marco da política peruana daquele início de século: uma publicação que, se não traçava ainda um “programa socialista”, aparecia como um esforço ideológico nesta direção. Com isto, ele dava início a suas atividades como editor, o que perfaria importante parcela de sua atuação política madura: comunista. A vitória da Revolução Russa e o fim da I Guerra assinalou – no Peru e no mundo – um período de agitação das classes trabalhadoras. Em 1919, Mariátegui e seu camarada César Falcón fundaram o jornal La Razón – que logo se tornou uma voz destacada em prol das reivindicações operárias. Neste mesmo ano, uma greve geral foi reprimida na capital com violência e prisões; iniciava-se uma década de populismo de direita – economicamente pró-estadunidense, mas que também flertava com o movimento indigenista. Mariátegui, por meio de seu periódico, saiu em defesa dos líderes operários presos, atitude que fez com que ele viesse a ser aclamado por uma multidão nas ruas. Contudo, um mês depois, a redação do jornal foi fechada, e ele, ainda que de modo discreto, exilado na Europa, vindo a receber uma espécie de bolsa governamental – supostamente a título de propagandista do Peru no estrangeiro (em verdade, uma benesse conciliadora, já que por casualidade era parente da esposa do presidente Augusto Leguía). Como ele relataria (“Apuntes autobiográficos”, 1927), seguiu então viagem, rompendo com sua experiência inicial de literato “contaminado de decadentismo” (individualismo, ceticismo) e se voltando “resolutamente” ao socialismo. Viveu três anos e meio por lá (entre fim de 1919 e 1923), tendo conhecido alguns países: Hungria, Áustria, Tchecoslováquia, Alemanha, Suíça, França e, em especial, Itália, onde passou a residir. Em meio à influência da conjuntura ali experimentada – na qual ecoava alto a Revolução Soviética –, a Europa o aproximou das obras de Marx, Engels e Lênin, além do movimento comunista italiano e do surrealismo. No Partido Bolchevique ele enxergou a convergência entre teoria e prática, entre filosofia e ciência; afirmou que Lênin era “incontestavelmente” o revigorador “mais enérgico e fecundo do pensamento marxista”. Ainda segundo ele, nesse período, casou-se com “uma mulher e algumas ideias”; a italiana Anna Chiappe, sua companheira, transmitiu-lhe um “novo entusiasmo político”. A família dela era próxima ao filósofo Benedetto Croce, por meio de quem Mariátegui conheceria a obra de Georges Sorel – sindicalista-revolucionário do qual absorveu ideias como a do “mito da greve geral” e da defesa do uso da violência revolucionária contra a violência instituída. Na Itália, ele assistiu a ocupações de fábricas, congressos de trabalhadores e se aproximou do coletivo editor da revista L’Ordine Nuovo; participou de grupos de estudos socialistas, travou contato com o pensamento de Antonio Gramsci e de Umberto Terracini, e vivenciou a criação do Partido Comunista da Itália (a partir de cisão do Partido Socialista Italiano). Sua estada europeia foi também um mirante donde pôde observar o Oriente: a Revolução Chinesa e o despertar da Índia, dos árabes e dos diversos movimentos nacionalistas e anti-imperialistas do pós-guerra. Nestes acontecimentos, verificou um processo de declínio da sociedade ocidental. Tal concepção se reforçaria quando viu de perto a ascensão fascista italiana – o que percebeu como resposta do grande capital a uma profunda crise social e política. Em paralelo a esta efervescência sociopolítica, Mariátegui teve acesso às obras de Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche, interessando-se tanto pela recém-criada psicanálise, como pela filosofia intuitiva (ou vitalista). Porém, se de início ele trouxe consigo a humildade de um discípulo aberto ao então centro do pensamento moderno, progressivamenteContinuar lendo “O marxismo de José Carlos Mariátegui”