O marxismo de Aimé Césaire

Poeta, professor, ensaísta, dramaturgo e político anticolonialista, foi um dos idealizadores do movimento político-cultural antirracista Negritude, membro do Parti Communiste Français e fundador do Parti Progressiste Martiniquais

Por Dennis Oliveira*

CÉSAIRE, Aimé Fernand David (martiniquense; Baisse-Point, 1913 – Forte de França, 2008)

1 – Vida e práxis política

Aimé Fernand David Césaire, nasceu em uma família pobre e numerosa, na Martinica, ilha que ainda hoje é uma colônia dominada pela França; foi o segundo dos seis filhos de Fernand Césaire, funcionário público, e Éléonore Hermine, costureira.

Desde cedo destacou-se nos estudos. Para que ele e seus irmãos pudessem ter acesso a uma educação de melhor qualidade, a família mudou-se para Forte de França, capital martiniquense. Na cidade, Césaire estudou no Lycée Schoelcher até os 18 anos; nesse período, quando tinha 11 anos, conheceu Léon Gontram Damas – quem se tornaria uma das lideranças do Négritude, movimento político e cultural composto por estudantes negros oriundos de países colonizados pela França, dentro da própria metrópole colonial.

Destacou-se como estudante e, em 1931, ganhou uma bolsa do governo francês para estudar no Liceu Louis le Grand, em Paris, onde junto com Leopold Senghor fundaria três anos depois, em 1934, o jornal L’Étudiant Noir [O Estudante Negro]. A iniciativa de editar o periódico foi o pontapé inicial da constituição do Négritude – movimento de identidade étnica cujo alicerse seria o sentimento de pertencimento à diáspora africana em um país branco e colonizador. Logo em seus primeiros textos, a publicação trouxe críticas contundentes ao sistema de opressão cultural a que a França submetia suas colônias.

Em 1935 – mesmo ano em que Césaire foi admitido na École Normale Supérieure da Université Sorbonne, em Paris – seu poema “Cahier d’un retour au pays natal” [“Caderno de retorno ao país natal”] ficou conhecido por ter sido o primeiro texto que utilizou o vocábulo francês “négritude”. Com influência surrealista, o texto de mais de 50 páginas foi publicado na revista Volontés, em 1939; posteriormente, o escritor André Breton, um dos principais expoentes do surrealismo francês, editou por conta própria a produção literária, considerando-a como um alto monumento lírico do período. Os estudos de Césaire incluíram ainda Latim, Grego e Literatura Francesa.

Casou-se em 1937 com a escritora Suzanne Roussi – que adotaria o sobrenome “Césaire” –, uma conterrânea que conheceu em sua estadia na capital francesa; juntos regressaram à Martinica, em 1939, quando Aimé tinha 25 anos. Ao longo do matrimônio, tiveram quatro filhos e duas filhas.

No retorno ao Caribe, já licenciado em Letras, ele lecionou literatura no Lycée Schoelcher. O que o Poeta da Negritude fez no Liceu foi justamente expressar a sua erudição (ele tinha sido formado em uma das instituições mais elitistas da França, falava várias línguas e era profundo conhecedor da literatura francesa, em especial da obra de Victor Hugo) e apresentar-se como homem negro, falando a seus alunos acerca das civilizações africanas. Em seu período de docência, um dos alunos de Césaire foi o martiniquense Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo marxista anticolonialista que se destacou por suas obras sobre o racismo e envolvimento na luta pela independência argelina; outro estudante que teve aulas com Aimé foi o escritor Édouard Glissant.

O ano de 1939 foi marcado pelo início da II Guerra Mundial, e a França foi rapidamente ocupada pelos nazistas em 1940. O regime colaboracionista francês de Vichy permitiu então que a Martinica fosse administrada diretamente pelos nazistas – que intensificaram a repressão e o racismo, proibindo qualquer tipo de manifestação cultural na ilha caribenha. Antes da invasão alemã, a França tinha sido governada por uma aliança de centro-esquerda; estas vivências distintas de Césaire na metrópole – sob um regime progressista quando estudava, e depois sob o jugo fascista – constituíram o cenário no qual ele pontuou as suas referências políticas para discutir o colonialismo.

No ano de 1944, Césaire viajou ao Haiti na qualidade de adido cultural diplomático. A experiência, no único país que conquistou a independência por meio de uma revolução liderada por negros escravizados, vai impactar seu pensamento no sentido de entender a potência da população negra na luta contra o colonialismo e o racismo. A práxis política de Césaire também se expressava na sua atuação como poeta, escritor e jornalista. Junto com Suzanne Césaire, pouco antes, em 1941, tinha fundado a revista Tropiques [Trópicos], periódico trimestral literário que circulou até 1945. André Breton, que foi colaborador da revista, contribuiu para a sua repercussão na Europa, e como não tivera oportunidade de conhecer Césaire em Paris, foi à Martinica visitá-lo; na ocasião, notabilizou-se por incentivar o martiniquense a utilizar o surrealismo como uma arma política.

Desde então, a junção entre surrealismo e africanismo permearam a obra de Césaire. No ano de 1947, ele participou da revista Présence Africaine [Presença Africana], criada por Alioune Diop, na capital francesa, e que reunia os mais destacados intelectuais da diáspora africana com posições contrárias ao colonialismo; trechos da sua obra Discurso sobre colonialismo (1950) foram publicados nesta revista.

No retorno à Martinica, em 1939, engajou-se também na política, aderindo ao Parti Communiste Français (PCF) logo após o fim da II Guerra Mundial. Em 1945, aos 32 anos, foi eleito prefeito da capital Forte de França, exercendo o cargo entre 1945 e 2001. No período, elegeu-se também deputado da Assembleia Nacional da França, função que desempenharia entre 1945 e 1993; em seu período de legislatura, Césaire priorizou, entre outros temas, a preservação e o desenvolvimento da cultura da Martinica.

No ano de 1946, apoiou projeto de lei no parlamento francês que transformou a Martinica em um departamento ultramarino da França, superando assim o estatuto de “colônia”. Em 1951, por sua vez, votou contra o Tratado de Paris, responsável por instituir a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA); nas votações, foi contrário também à fundação da Comunidade Econômica Europeia (CEE) e da Comunidade Europeia de Energia Atômica (CEEA ou EURATOM).

Césaire rompeu com o PCF após as críticas a Josef Stálin feitas pelo dirigente do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev, e em 1958 fundou o Parti Progressiste Martiniquais [Partido Progressista Martiniquense] (PPM), que defendia, entre outras pautas, a autonomia do território caribenho e o exercício de um comunismo mais focado no pensamento e na ação local. Em seu estatuto, o partido se definia como “um partido nacionalista, democrático e anticolonialista, inspirado no ideal socialista”; com efeito, sob o comando de Césaire, a luta pela autonomia da Martinica foi central à organização – que reivindicou a transformação da Martinica de um “departamento ultramarino” em uma “região federal” da França, além do fortalecimento econômico popular e da identidade martinicana.

A atuação política não afastou Césaire do exercício literário. Em 1956, o escritor participou do I Congrès des Écrivains et Artistes Noirs [Congresso de Escritores e Artistas Negros], sediado na Sorbonne Université, em Paris, evento que contou com a participação de delegações de 24 nações. Na ocasião, o autor apresentou o texto “Culture et colonizations” [“Cultura e colonização”], com reflexões sobre a desestruturação de culturas de povos colonizados por conta de impactos do processo de dominação. Ao longo da década de 1960, o autor também produziu peças de teatro e outras obras literárias, com destaque para La tragédie du roi Christophe (1964) [A tragédia do rei Christophe]. Na vida pessoal, o período ficou marcado pelo divórcio entre Aimé e Suzanne, ocorrido em 1963. Neste mesmo ano Césaire visitou o Brasil, onde, após sua experiência haitiana, teve uma oportunidade de estabelecer um contato maior com a cultura afro-americana.

Nos anos 1970, o PPM se aproximou da bancada do Parti Socialiste (PS) francês, partido que tinha como uma das principais lideranças François Miterrand, e assim permaneceria até o fim da carreira parlamentar de Césaire, cuja última ação política foi em 2005, ao criticar um projeto de lei que versava sobre conteúdo curricular nas escolas francesas (afirmando que supostos aspectos da colonização teriam sido positivos).

Na década de 1970, a produção literária do marxista diminuiu; mas nos anos 1980, seus poemas voltaram a ser publicados.

Em 2004, Aimé Césaire foi homenageado com o Prêmio Toussaint Louverture da UNESCO, como forma de reconhecimento por seu trabalho na luta antirracista. Na ocasião, o autor, impossibilitado de viajar, participou da cerimônia virtualmente.

Até 2005, com 92 anos, Césaire dirigiu o PPM. Neste ano, seu nome voltou a aparecer na imprensa, devido a sua recusa em comparecer a um encontro com o conservador Nicolas Sarkozy, na ocasião ministro do Interior da França (e que seria presidente do país entre 2007 e 2012). A atitude do escritor foi uma reação ao fato de este político ter subscrito uma carta que enfatizava o “papel positivo” do colonialismo. Césaire faleceu aos 94 anos, em 17 de abril de 2008, devido a complicações cardíacas.

2 – Contribuições ao marxismo

Césaire foi poeta, ensaísta, dramaturgo, orador, jornalista, militante anticolonialista e político. O pensamento de Césaire desenvolve uma concepção marxista a partir dos seguintes elementos: a) pensar o conceito de pertencimento étnico-racial (que ele chama de negritude) a partir de uma perspectiva histórica com base nas singularidades das vivências de pessoas negras; b) perceber que esta perspectiva histórica é marcada pelo colonialismo, que tem como centro a expansão das civilizações europeias para o domínio de outras civilizações; c) e que este processo histórico do colonialismo impõe aos povos colonizados – em particular a seu país, a Martinica – toda uma ordem de opressões e de sofrimentos, que ele narra em suas verves poéticas; d) e ainda, que estas mesmas civilizações, que trazem toda a ilustração artística e racional, consolidam-se a partir desta ordem de opressões, apontando para a necessidade de uma crítica dialética do projeto da Modernidade e do modelo de razão do Esclarecimento.

Em sua obra, Césaire abordou com veemência as chagas do racismo e da opressão colonial, ao mesmo tempo que defendia a transformação radical pela negritude como única forma de salvar o mundo da barbárie. Em meados do século XX, o pertencimento a uma identidade negra estava diretamente vinculada a algo “menor”. A palavra francesa “nègre” [“negro”] tinha um tom pejorativo, o que nos faz perceber que a emergência do termo “négritude” foi uma ressignificação sua, feita a fim de evidenciar uma busca pela identidade negra e seus respectivos sentimentos, revoltas e lutas. A negritude, para Césaire, é não só uma percepção de pertencimento étnico, mas uma consciência revolucionária, de modo que a própria consciência da negritude é uma consciência revolucionária. Veja-se que a depreciação da identidade negra vigorava na Martinica – a ponto de pessoas com a pele um pouco mais clara, ou que tinham estudado na França (absorvendo a cultura do colonizador), buscarem disfarçar este pertencimento, com vergonha das suas origens.

Transitando entre uma percepção particular artística, expressa nos seus textos poéticos e literários e uma percepção universal acadêmica, demonstrada nos seus textos de caráter político, Césaire constrói não só um diagnóstico preciso do que é a construção de um pensamento sobre relações étnico-raciais como também se aproxima do marxismo nesta sua interpretação, principalmente ao rejeitar a limitação de negritude a uma visão biológica (o que levaria a uma pretensa essencialidade da categoria “raça”).

O pensamento de Césaire insere-se na modernização do pensamento marxista sobretudo no tocante ao problema do racismo, considerado como secundário até o início do século XX. Porém, já a partir do final dos anos 1910 e nos anos 1920, durante a vigência da Internacional Comunista (IC), a discussão sobre a questão negra avança, particularmente com o fortalecimento e maior impacto das organizações negras dos Estados Unidos e do Caribe. Vinculando o racismo ao imperialismo e colonialismo, a discussão da III Internacional exortava o movimento comunista a lutar contra o racismo como elemento essencial para a construção do socialismo e Dmitri Manuilsky, dirigente da IC em 1924, chegou a fazer críticas duras a partidos comunistas europeus (inclusive ao Partido Comunista Francês) por desprezar a temática racial.

Cerca de uma década depois, no artigo intitulado “Conscience raciale et révolution sociale” [“Consciência racial e revolução social”], que circulou entre maio e junho de 1935, Césaire critica duramente o sistema de opressão cultural que a França usava para submeter suas colônias, sinalizando os pontos centrais da sua proposta: o autoconhecimento da condição negra como ponto de partida para poder se expressar ao mundo o que se sente, pensa e reivindica, ao invés de se limitar a ser meramente uma “curiosidade étnica”; a ação do negro e da negra está diretamente vinculada ao seu autoconhecimento como pertencente a uma determinada etnicidade. Ainda neste texto, o autor afirma: “Sim, vamos trabalhar para sermos negros, na certeza de que isto é trabalhar pela Revolução, pois isso fará a Revolução”.

Por meio de linguagem literária, repleta de metáforas, personificações e outros recursos linguísticos, o marxista caribenho constrói mais reflexões sobre a realidade negra a partir do contexto da Martinica: “Ouça o mundo branco terrivelmente cansado de imensa fadiga, suas juntas rebeldes rangem sob as estrelas implacáveis, ​​sua rigidez de aço de má qualidade perfura a carne mística, ouve suas vitórias traiçoeiras anunciarem suas derrotas”.

Nessa época Césaire colaborou também com a revista Tropiques, que reunia produções de escritores martinicanos e franceses que se opunham ao colonialismo e ao nazismo – principalmente neste período em que a França estava sob o jugo do governo fantoche de Vichy, após ser ocupada pelas tropas alemãs. O objetivo principal da publicação era sedimentar um movimento cultural na Martinica, dando visibilidade a seus escritores. Mas Césaire, seu principal colaborador, transformou a publicação na grande porta-voz do movimento Negritude; a revista foi perseguida pelo governo de Vichy, tendo edições censuradas e sofrendo interdição de fornecimento de papel para impressão, entre outros ataques. Muitas das percepções expressas nas obras de Césaire dão os contornos da perspectiva política do Negritude, indicando o amadurecimento de suas ideias políticas. Estando nas terras do colonizador, capta a realidade como um sujeito vindo de um território colonizado e, portanto, colocado dentro de um grupo diferenciado. Dessa colocação como sujeito diferenciado (isto é, uma identidade construída a partir do “Outro Opressor”), Césaire evoca a necessidade de se constituir como sujeito específico – de expressar a própria voz coletiva de todos os que são guetificados simbolicamente pelo “Opressor”.

A ênfase nas vivências e na experiência histórica singular dos povos africanos destacada por Césaire traz um contraponto importante para uma visão dialética da modernidade, muitas vezes desprezada por certos setores do pensamento marxista. De fato, o marxismo é herdeiro direto da modernidade; e a reflexão de Marx de que o capitalismo constrói uma racionalidade que pode servir para sua própria superação é uma ideia que levou certas correntes a uma visão simplista, ao considerarem que a revolução socialista passaria necessariamente por um “processo civilizatório”, definido a partir do modelo da racionalidade europeia, de modo que os países colonizados deveriam se “enquadrar” no modelo e percurso das lutas de classes ocorridas nos países europeus. Daí que Césaire é extremamente firme ao apontar, em Le discours sur le colonialisme [Discurso sobre o colonialismo] (1950), que esta civilização, a qual inaugura uma perspectiva racional das relações de classe – possibilitando assim sua superação –, é também, com a sua expansão colonial, irracional (ou “doente” como ele a chama). E mais: esta irracionalidade faz-se presente inclusive entre pensadores iluministas e “humanistas”, como Ernest Renan, filósofo francês popular no século XIX e início do XX que considera que a regeneração de raças inferiores por outras superiores está na natureza e ordem da humanidade. Por isto, Césaire afirma que ninguém coloniza de forma inocente ou impune: “uma civilização que justifica a colonização – portanto a força – já é uma civilização doente, uma civilização moralmente atingida que, irresistivelmente, de consequência em consequência, de negação em negação, chama seu Hitler, quero dizer, seu castigo”. Em outras palavras, o nazismo é produto da própria evolução desta “racionalidade”, conclusão próxima a que chegam os pensadores da Teoria Crítica (dita por vezes Escola de Frankfurt), Theodor Adorno e Max Horkheimer, em sua obra Dialética do esclarecimento: uma razão dissociada de qualquer princípio ético e instrumentalizada pelo capital, que desemboca na barbárie.

A perspectiva de barbárie nestes termos foi uma grande contribuição de Césaire – e muito à frente de seu tempo, sendo pioneiro no campo da crítica marxista acerca da modernidade, capitalismo e revolução para além das fronteiras europeias. Sua erudição – expressa tanto na sua verve poética como na indignação dos seus escritos, na sua militância política e na reconhecida qualidade intelectual – fez com que o periódico francês Le Nouvel Observateur [O Novo Observador] o considerasse “um homem de palavras e um homem de combates”, em uma demonstração de que seu aporte ao conhecimento se estabeleceu no século XX como percurso para a transformação revolucionária da sociedade.

Ainda em Discurso sobre o colonialismo, Césaire afirma em que a civilização considerada “europeia” ou “ocidental” se demonstra incapaz de resolver o problema colonial e o problema do proletariado, o que o leva à conclusão de que “o grave é que a Europa é moral, espiritualmente indefensável”. Na sequência, o autor aponta o sentido ideológico da articulação entre colonização e civilização, afirmando que o significado de colonização não é “evangelização, nem empreendimento filantrópico, nem vontade de empurrar para trás as fronteiras da ignorância”, e nem mesmo a “expansão de Deus ou do Direito”. Para ele, “colonização” é uma “forma” assumida por uma determinada civilização (no caso, a europeia) ao se ver “obrigada internamente a estender à escala mundial a concorrência de suas economias antagônicas”.

Para Césaire, a discussão sobre colonialismo tem importância fundamental na construção do conceito por ele proposto de negritude, que é assim definido: “a negritude não é essencialmente de natureza biológica”, mas é uma concepção que faz referência a “uma soma de experiências vividas que terminaram por definir e caracterizar uma das formas de humanismo criado pela história” – sendo, portanto, “uma das formas históricas da condição humana”.

Já sua ruptura com o Parti Communiste Français se deu por sua adesão às críticas ao modelo estalinista (hegemônico no movimento comunista mundial daquele período), críticas estas que foram impulsionadas pelas denúncias de Nikita Kruschev, em 1956, contra o governo de Stálin na União Soviética. Em sua conhecida carta a Maurice Thorez (out. 1956), presidente do PCF, Césaire aponta seu descontentamento com o apoio do partido à política do governo francês no Norte da Argélia – em tempos nos quais este país africano lutava por sua independência. Mais adiante, nesta carta que marca seu rompimento com o PCF, Césaire afirma que desaprova a maneira como alguns indivíduos entendem ou utilizam os conceitos do marxismo e do comunismo: “O que eu quero é que o marxismo e o comunismo sejam postos a serviço dos povos negros, e não os negros a serviço do marxismo e do comunismo” – defendendo que “a doutrina e o movimento sejam feitos para os homens, e não os homens para a doutrina ou movimento”. Declara ainda o desejo de ver florescer uma versão africana do comunismo, embora acredite que esta perspectiva não se realizará por conta das ações do PCF, cujo papel perante os povos coloniais era de “magistério”, em um anticolonialismo contraditório e com muitas marcas coloniais. Afirma que “não haverá comunismo próprio” nos países coloniais “dependentes da França” enquanto os escritórios “da secção colonial do Partido Comunista Francês” insistirem em pensar nestes países como sendo “terra de missões ou territórios sob mandato”.

Suas críticas à perspectiva eurocêntrica do movimento comunista reivindicaram para a população negra o protagonismo na construção de experiências revolucionárias nos seus territórios, afirmando que o campo do marxismo deveria ser dialógico o suficiente para incorporar estas várias experiências; uma visão próxima à de Suzanne Césaire, sua esposa, que nos textos produzidos para a revista Tropiques apontava para a necessidade de uma universalidade do humanismo, que incorporasse também as vivências negras.

Ao sintetizar o Negritude com base em três elementos – identidade (orgulho do pertencimento racial), fidelidade (às tradições ancestrais africanas) e solidariedade (união de todos os negros e negras) –, Césaire possibilitou que o movimento se transformasse numa força rebelde contra o colonialismo. Durante a resistência ao nazismo e no pós-II Guerra a aproximação com o movimento comunista internacional foi grande. Entretanto, à medida que a agenda anticolonial foi sendo diluída, no âmbito de parte do movimento comunista, particularmente nos países europeus, a separação foi iminente.

A partir de então, em alguns momentos a ideologia do Negritude – sua perspectiva sobre o conceito de “negritude” – mostraria ter ambiguidades, caminhando para um “essencialismo racial”. Isto afastaria o movimento de uma perspectiva revolucionária – ainda que noutros momentos tenha potencializado as lutas pela autonomia de povos da diáspora africana em colônias no Caribe e na África.

Assim, considera-se que, mais do que criticar certas posturas do Negritude e do pensamento de Césaire, o importante é entendê-lo dentro da sua complexidade e, principalmente, apontar desafios que precisam ser refletidos pelo marxismo – pois a luta por uma nova sociedade, socialista, implica também uma transformação das relações e da condição humana, isto é, passa pelo ajuste de contas, sob uma perspectiva dialética, acerca de qual concepção de humanidade foi construída ao longo do projeto da modernidade. Para tanto, é fundamental perceber os sentidos construídos a partir desta ideia europeia de modernidade, para assim se poder ressignificar o colonialismo, compreendendo como articular estas particularidades e singularidades rebeldes com a constituição de uma universalidade que se conecte com a construção de uma sociedade sem opressão.

Césaire, com sua poesia, ativismo e reflexões, é um pensador instigante. Sua leitura mostra que o marxismo é uma teoria e uma prática vivas.

3 – Comentários sobre a obra

Césaire foi autor de inúmeras obras políticas e poéticas, sendo considerado um dos ideólogos do movimento Négritude. Sua produção literária está distribuída majoritariamente entre ensaios, poesias e peças de teatro, com textos traduzidos para vários idiomas.

Entre os anos 1930 e 1980, foram publicados mais de 15 livros assinados pelo autor. Seus primeiros textos foram poesias com tom analítico e reflexões líricas sobre a acepção de negritude, além de alguns ensaios. Já as décadas de 1950 e 1960 foram dedicadas às produções ensaísticas e dramáticas, fase na qual se encaixa uma das obras mais famosas do marxista, Le Discours sur le colonialisme, com espaço para duas obras de poesia: Ferrements [Ferramentas](Paris: Ed. do Seuil, 1960); e Cadastre [Cadastro] (Paris: Ed. do Seuil, 1961).

Com cerca de vinte anos, Césaire publica na seção “Nègreries” do jornal L’Étudiant Noir – da Association des Étudiants Martiniquais en France – o ensaio “Conscience raciale et révolution sociale” (n. 3, mai. 1935), texto no qual começau a desenvolver o conceito de “negritude”, que viria a ser fundamental para a corrente político-cultural Négritude. O artigo – disponível na biblioteca digital Cairn (https://shs.cairn.info) – parte da interrogação: “Qual revolução foi feita por um povo sem curiosidades?”. Afirma que é insuficiente se conclamar o negro a se revoltar “contra o capitalismo que o oprime”, antes de que o negro tenha compreensão de sua própria identidade e condição. Somente após a “negritude” estar firmada na consciência do negro “como uma bela árvore” é que se poderá fazer uma “verdadeira revolução”: só então se poderá “triunfar sobre todas as escravidões, nascidas da ‘civilização’”.

Em 1948, escreve o prefácio do livro Esclavage et colonisation (Paris: Presses Universitaires de France), de Victor Schoelcher, texto no qual Césaire detalhou historicamente as duras condições sob as quais foi conquistada a abolição da escravidão.

Em Cahier d’un retour au pays natal (Paris: Volontés, 1939) – publicado no Brasil como Caderno de retorno ao país natal (São Paulo: EDUSP, 2021) –, o escritor destila, ao longo do texto, de forma poética, a dura realidade do povo negro da Martinica, evidenciando as chagas do racismo e da opressão colonial. Ao mesmo tempo, aponta que a única forma de salvar o mundo da barbárie é a transformação radical pela perspectiva da negritude.

Já a obra Les armes miraculeuses [As armas milagrosas] (Paris: Ed. Gallimard, 1946) é composta por 26 poemas, muitos já publicados na revista Tropiques. Redigida durante o período da II Guerra Mundial, a obra enfrentou a censura do regime de Vichy por meio do surrealismo, da opacidade, da subjetividade e da polissemia para retratar cenários, análises e críticas acerca da Martinica. O prefácio da publicação foi escrito pelo surrealista Breton. Posteriormente, uma das edições da obra seria ilustrada por Pablo Picasso.

Entre os ensaios do escritor, o livreto Le Discours sur le colonialisme (1950) foi publicado pela editorial Réclame, ligada ao Parti Communiste Français, e em seguida saiu pela editorial Présence Africaine (1955). A obra explora de maneira pioneira as relações entre o colonialismo, a dominação do poder e hierarquização dos saberes, tendo se notabilizado por sua crítica contundente às opressões coloniais. Para isso, o autor enfatizou o modus operandi da colonização e as violências intrínsecas a esse processo. Foi traduzida ao português como Discurso sobre o colonialismo (São Paulo: Veneta, 2020).

Os textos dramáticos merecem destaque na obra do martiniquense La tragédie du roi Christophe (Paris: Présence Africaine, 1963), peça teatral sobre a história de Henry Christophe (1767-1820), autoproclamado monarca do Haiti. Além dos elementos cênicos comuns ao gênero, Césaire usa o tempo cronológico do século XIX e a abundância de diálogos, tão demarcados na história, para trazer à tona debates sobre identidade, dominação colonial e resistência africana. As tradições populares e a preocupação constante com a participação do público estão presentes no texto dramático. A obra reforça a relevância das vivências e dos estudos sobre o Haiti para a trajetória e produção literária do escritor.

Outra produção dramática é Une saison au Congo (Paris: Ed. do Seuil, 1965) – em português, Uma temporada no Congo (São Paulo: Temporal Editora, 2022) –, história em três atos que utiliza características líricas e dramáticas para retratar a trajetória trágica de Patrice Emery Lumumba, líder anticolonial e ex-primeiro-ministro da República Democrática do Congo, assassinado em 1961. Trata-se de uma personagem reconhecida pelas ações otimistas, emocionais e incisivas em prol de sua nação.

Depois de uma pausa nas publicações literárias em boa parte da década de 1970, nos anos 1980, Césaire ainda redigiu poemas e fez discursos. Em 1982, aparece a última coletânea de poemas publicada pelo autor, Moi, laminaire [Eu, laminária] (Paris: Aux Editions Du Seuil, 1982) – publicada em português como Eu, Laminária… últimos poemas (Rio de Janeiro: Travessa, 2022) –, obra reconhecida por conta de um lirismo menos explosivo e mais reflexivo. Os textos abordam temas como amizade, criação poética e homenagens (póstumas ou não) a companheiros de trabalho e intelectualidade, em um exercício de maturidade literária e riqueza de recursos linguísticos. Também a Martinica é retratada por meio da polissemia e do uso abundante de figuras de linguagem.

Já seu Discours sur la négritude (Paris: Présence Africaine, 1987) foi pronunciado em 1987 na ocasião da I Conferência dos Povos Negros, na Florida International University. Na conferência, Aimé Césaire traz reflexões que complexificam e atualizam o conceito de negritude; de exemplos cotidianos a metáforas, o autor destaca a importância da identidade, do direito à diferença e do respeito à personalidade coletiva. A edição brasileira – Discurso sobre a negritude (Belo Horizonte: Nandyala, 2010) – conta com um prefácio de Carlos Moore, que traça uma linha do tempo do desenvolvimento da perspectiva de “negritude”, considerada como “consciência-posicionamento contra o racismo”.

A obra de Aimé Césaire conta ainda com as coletâneas de poesia Soleil cou coupé [Sol pescoço cortado] (Paris: Ed. K., 1948) e Corps perdu [Corpo perdido] (Paris: Ed. Fragrance, 1949); e com a peça teatral Et les chiens se taisaient [E os cães se calaram] (Paris: Ed. Présence Africaine, 1962), anteriormente editada como um dos poemas – “Une tempête”[“Uma tempestade”] – da obra Les armes miraculeuses (Paris: Gallimard, 1946).

O ensaio Toussaint Louverture: la Révolution Française et le problème colonial [Toussaint Louverture: a Revolução Francesa e o problema colonial] (Paris: Club Français du Livre, 1960) – republicado em 1962 (Paris: Presença Africana) –, e a carta Lettre à Maurice Thorez [Carta para Maurice Thorez] (Paris: Présence Africaine, 1956) também compõem a lista de escritos do Poeta da Negritude.

Em 2004, Césaire deu ainda uma entrevista a François Vergès, que foi publicada com o título Nègre je suis, nègre je resterai (Paris: Albin Michel, 2005) – lançada em português como Negro sou, negro serei (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024) –, obra que apresenta um panorama do pensamento do marxista e de sua trajetória.

Em português encontra-se ainda a coletânea intitulada “Aimé Césaire, textos escolhidos” (Rio de Janeiro: Cobogó, 2022), que reúne três de suas mais impactantes obras: “A tragédia do rei Cristophe”, “Discurso sobre o colonialismo” e “Discurso sobre a negritude”

Escritos de Aimé Césaire podem também ser obtidos livremente na rede, inclusive em português, em portais como: Susa Literatura (https://susa-literatura.eus); e o do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (https://antropologiadeoutraforma.wordpress.com).

4 – Bibliografia de referência

ALMEIDA, Lilian de. O teatro negro de Aimé Césaire. Niterói: Editora da UFF-CEUFF, 1978.

BERND, Zilá. O que é negritude (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense, 1988.

BUONICORE, Augusto C. Marxismo, história e Revolução Brasileira: encontros e desencontros. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.

DOMINGUES, Petrônio. “Movimento de negritude: uma breve reconstrução histórica”. Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 10, n. 1, jan.-jun. 2005. Disp.: https://www.revistas.usp.br.

GUARIENTI, Franciele Rodrigues. Quando o Calibã desperta: a negritude em relação na poética de Aimé Césaire. Tese [doutorado], Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, 2021. Disp.: https://repositorio.ufsc.br.

NASCIMENTO, Breno. “Aimé Césaire: Marxismo, racismo e anticolonialismo”. Esquerda online, [s.l.], 26 jun. 2020. Disp.: https://esquerdaonline.com.br.

Notas

* Dennis Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo; graduado em Comunicação Social (USP), tem mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação (USP); é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados-USP e ativista do movimento negro. Autor de, entre outras obras: Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (São Paulo: Dandara, 2021).

* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes, Felipe Santos Deveza e Joana Aparecida Coutinho, e ilustração de Marcelo Guimarães Lima, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução sem fins comerciais desde que citada a fonte e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.