Artista plástico, ensaísta e ativo militante político, foi um dos maiores pintores muralistas mexicanos, tendo sido membro do Partido Comunista del México e, por breve período, da IV Internacional
Por Felipe Santos Deveza e Marina Mainhard *
RIVERA, Diego (mexicano; Guanajuato, 1886 – Cidade do México, 1957)
1 – Vida e práxis política
Nascido em Guanajuato, sendo filho de Maria e de Diego Barrientos Rivera, Diego Maria de la Concepción Juan Nepomuceno Estanislao de la Rivera y Barrientos Acosta y Rodríguez nasceu na região central da cidade. Porém, devido a recomendações médicas e suspeitas de desnutrição, logo foi viver no interior montanhoso próximo, ficando aos cuidados de Antonia, sua babá ou “nana indígena”, conforme narra em suas memórias1. Interessou-se pelo desenho desde muito pequeno. Recuperado pelo clima das montanhas e pelo zelo de Antonia, retornou aos cuidados de sua mãe e seu pai. Professores de formação, seu pai era funcionário municipal e sua mãe se dedicava as atividades domésticas de uma casa abastada. A família Rivera era tipicamente mestiça e com diversas origens, tendo antepassados indígenas e europeus.
Aos 6 anos foi morar na Cidade do México, onde seus pais e familiares teriam papéis importantes na sua educação. Aprendeu a ler e escrever com uma tia-avó, até que foi matriculado em uma escola católica. Esta experiência lhe provocou uma repulsa, desde a infância, pela religião. Aos 10 anos começou a ter aulas noturnas de arte na Academia de San Carlos e um pouco depois já frequentava a escola de arte em tempo integral. Teve uma formação mais artística que escolar convencional. Foi durante esse período que conheceu o famoso gravador José Guadalupe Posada – quem, com obras publicadas em jornais e livros, popularizou a imagem das caveiras mexicanas (as catrinas2).
Ao completar 20 anos, conseguiu uma bolsa de estudos para viajar à Espanha e conhecer o ambiente acadêmico da pintura europeia. Viveu 14 anos na Europa, dez deles com Angelina Beloff, uma pintora de origem russa com quem se casou e morou em Paris. Teve um filho com ela, que morreu de meningite ainda bebê. Durante seu período europeu (1907-1921) conheceu Picasso, as obras de Cézanne e os artistas do bairro de Montparnasse, podendo experimentar as tendências artísticas que estavam florescendo, como o cubismo e o pós-impressionismo, que lhe renderam um relativo reconhecimento em Paris. Para ganhar a vida, especializou-se em copiar obras conhecidas e o estilo dos autores, vendendo seus quadros no mercado da falsificação. Esse período lhe rendeu um grande aprendizado, o qual mais tarde empregaria em suas mais célebres obras.
Diferentemente de outros muralistas, Diego não se envolveu nas batalhas da Revolução Mexicana (1910-1920). Em 1921 ele foi convidado por José Vasconcelos (1882-1959), secretário de Educação do governo pós-revolucionário de Álvaro Obregón (1920-1924) para decorar as paredes de prédios públicos com obras que ajudassem a contar a história do país. Embora desejasse refundar a cultura nacional, Vasconcelos buscava na Europa referências para o renascimento cultural mexicano, e Diego foi escolhido por seu reconhecimento artístico nos salões parisienses.
Após os anos na Europa, em 1921 ele desembarcou no porto de Veracruz. Por essa época se separou de Belloff, e em 1922 se casou com Guadalupe Marin (1895-1983), com quem teria duas filhas – Ruth e Guadalupe Rivera Marin. Como muitos outros modernistas latino-americanos, seria a partir do retorno da experiência europeia que Diego redescobriria o México, perceberia a exuberância de suas cores, a plástica da vida cotidiana e as imagens da Revolução, com suas tropas populares, de grandes sombreiros e pesadas cartucheiras, inspirando novos tipos, formas e temas. Trabalhando na Secretaria de Educação, procurou retratar festas populares, cenas do cotidiano de trabalhadores, e foi evoluindo para composições relacionadas à luta de classes e pela terra.
O retorno de Diego Rivera ao México ocorreu nos anos de fundação e início da construção do Partido Comunista de México – no embalo da Revolução Bolchevique (1917) –, e ele foi imediatamente atraído para o centro do partido, criando uma unidade entre a atividade artística dos muralistas e a atividade política comunista.
Em 1928, Diego se separou de Guadalupe, e logo começou sua relação com Frida Kahlo, que conhecera enquanto pintava a gigantesca obra mural que decora o edifício da Secretaría de la Educación Pública, no centro da Cidade do México. Com Frida – que buscava referências entre os pintores mais politizados da época e passou a acompanhar o seu trabalho – Diego viveu um intenso relacionamento, até a morte dela em 1954. Ele, por sua vez, se tornou um grande admirador dos quadros da companheira. No ano seguinte (1929), eles se casaram, e conforme demonstram suas cartas, diários e registros, Frida e Diego foram muito parceiros, embora ela nunca tenha deixado de expor suas opiniões, mágoas e críticas ao marido.
Entre 1923 e 1928, quando concluiu o famoso mural “Arsenal” – em que aparecem Frida Kahlo e Tina Modotti distribuindo armas aos revolucionários –, Diego Rivera daria uma nova orientação às obras murais, superando a ideia de caráter didático da simples ilustração da história mexicana, para as inúmeras tentativas alegóricas de representar nos murais a luta de classes.
No final da década de 1920, os governos do Maximato (série de governos controlados pelo ex-presidente Calles) perseguiram o PCM e o mantiveram na ilegalidade. Diego Rivera, que nessa época já era uma importante figura pública, conservaria seus contratos com o governo, sendo assim acusado por comunistas de colaborar com a “nova burguesia mexicana”. Isolado, Diego aceitou realizar alguns murais nos Estados Unidos, onde a sua obra ganhou notoriedade internacional.
Após pintar murais na Califórnia e em Nova Iorque com temas variados, em 1932 ele começou a pintar um mural no Rockfeller Center, prédio central de icônico magnata capitalista estadunidense. Desde o início este mural foi polêmico, já que juntava o mais famoso artista comunista da época a uma das mais icônicas sedes dos capitalistas. Em meio à maior crise econômica dos Estados Unidos e ao clima de conciliação das políticas do New Deal, do governo Roosevelt (1933-1945), este fato seria interpretado como excentricidade do magnata, e também do artista. O mural procurava representar a modernidade, o desenvolvimento científico e suas contradições de classe, em um tempo no qual se desenvolvia um pujante proletariado revolucionário. A obra tinha um retrato de Lênin em meio a faixas vermelhas e líderes do movimento operário – retrato que o magnata exigiu que fosse retirado. Com a recusa do artista, o próprio Rockfeller cobriria com tinta a figura do líder revolucionário russo. Vendo sua obra vandalizada, Rivera foi procurar explicações, e recebeu um ultimato: desistir do rosto do líder comunista, ou abandonar a obra. Diego destruiu o mural. Com o dinheiro que recebeu, pintaria uma réplica na Cidade do México, atualmente exposta no Palacio de Bellas Artes.
Antes de retornar ao México, Diego ainda produziu outras obras em centros socialistas dos EUA, ligados à dissidência trotskista, estabelecendo relações políticas que o levariam a se filiar à IV Internacional. Com esta proximidade, em 1937, Rivera recebeu León Trótski (1879-1940) em sua casa no México – como exilado, durante o governo Cárdenas (1934-1940).
Em 1939, por divergências políticas com Rivera, Trótski deixaria sua casa, cortando laços com o pintor. No mesmo ano, Diego foi expulso da IV Internacional, rompendo definitivamente com o trotskismo. Após o assassinato do exilado russo, Rivera chegou a ser considerado um dos suspeitos.
Depois do fim da II Guerra e das vitórias da União Soviética contra o fascismo, Rivera pediu seu reingresso no PCM, tendo então escrito uma autocrítica pública acerca de suas posições contra o governo soviético.
Na década de 1950, Diego já havia produzido milhares de metros de pintura mural e se dedicava à decoração do Estádio Olímpico, na Cidade Universitária da Cidade do México, um mosaico de pedras naturais. Ainda teve tempo de produzir um mural sobre a invasão da Nicarágua, e outro em que denunciava o bombardeio estadunidense sobre a população civil de Hiroshima e Nagasaki, com as figuras de Stálin e Mao Tsé-Tung lado a lado – destacados como líderes do mundo socialista.
Após a morte de Frida, ele se casou, em 1955, com Emma Hurtado, uma amiga que lhe havia servido de modelo para várias obras. Emma possuía afinidade política e ideológica com Diego Rivera, era formada em contabilidade e turismo, e ajudou o marido a organizar suas exposições, a gerir seus bens e a redigir suas memórias – publicadas por ela em livro póstumo.
No ano seguinte, Diego Rivera foi para a URSS tratar de um tumor. Em 1957, na Cidade do México, com 70 anos de idade, o pintor comunista faleceu devido a complicações do câncer.
2 – Contribuições ao marxismo
Diego Rivera é considerado um dos maiores pintores mexicanos – tendo retratado a partir do marxismo e da perspectiva das lutas de classe, a história e a cultura popular da América Latina –, além de ter sido um militante ativo, que teve protagonismo no movimento socialista de seu tempo, debatendo e escrevendo sobre a relação da arte e dos artistas com a revolução.
Destacou-se como muralista ao retratar a luta e a cultura popular, a Revolução Mexicana e as grandes contendas mundiais da primeira metade do século XX. Suas obras, ícones da identidade nacional, foram uma tentativa de interpretar, a partir do marxismo, a luta de classes e a história do povo mexicano.
Diego passou por diversas fases em sua carreira de artista, consagrando-se como um dos três grandes muralistas mexicanos3. Entre tantos temas, divulgou as catrinas, a luta camponesa, a Revolução Mexicana, e a imagem esquecida da capital asteca de Tenochtitlán, além de colocar as cores populares de seu país em um contexto internacional. Produziu uma imensa obra pictográfica que serviu de referência para a construção da identidade visual do México de após a Revolução, retratando as principais temáticas da nação e as grandes contendas mundiais de sua época. Os murais de Diego Rivera atualmente ilustram pôsteres, livros didáticos, revistas, jornais e todo tipo de material que retrate a história e a cultura mexicana.
Diego Rivera pintou ao longo de muitos anos a história mexicana. Em especial, dedicou-se a ilustrar a história pré-colombiana, a Conquista, a Independência do México e temas relacionados à Revolução Mexicana. Além de produzir muitas das imagens pelas quais se conhece o México no mundo, Rivera, juntamente com sua companheira Frida, também estudou e colecionou arte e objetos arqueológicos de culturas pré-colombianas, construindo uma coleção com milhares de peças. Essa imensa coleção arqueológica do casal hoje faz parte do Museu Anahuacalli, um prédio em formato de pirâmide mesoamericana, ricamente decorado com mosaicos de temas indigenistas.
Além de seu significado para o meio artístico nacional, o pintor foi um militante comunista que procurou utilizar o marxismo para interpretar, por meio da arte, a história das classes populares em sua luta por emancipação. Com efeito, embora tenha também legado ensaios de temática marxista, as mais importantes contribuições de Diego Rivera ao marxismo estão nos murais. Suas obras carregam diversas referências a questões em disputa no interior do movimento comunista ao longo dos anos.
Diego Rivera descobriu o marxismo a partir do leninismo e da Revolução Russa. O pensamento marxista de Rivera esteve relacionado com a construção do PCM e com a luta política no interior do movimento comunista. Suas reflexões se dedicaram particularmente à compreensão da arte e do papel dos artistas para a revolução, a partir do marxismo e do leninismo.
É difícil determinar uma coerência linear em seu pensamento, marcado por muitas oscilações – por vezes contraditórias. Inicialmente Rivera assumiu a ideia de que o muralismo seria um movimento de artistas proletários, organizados no Sindicato de Obreros Técnicos, Pintores y Escultores (SOTPE), que fariam o que foi denominado “arte proletária” – uma arte feita por proletários e para proletários. Mas logo, a questão sobre o que seria essa arte proletária – em termos de forma, conteúdo e propósito político – se tornou um debate complexo. A URSS se mantinha como uma referência política, embora os mexicanos tivessem críticas ao espírito criativo e revolucionário dos artistas soviéticos, procurando uma arte comunista propriamente mexicana – ou latino-americana.
A construção de uma estética mexicana iria se desenvolver ao longo da década de 1920, e os murais de Diego Rivera na Secretaría de Educación Pública (SEP)4 e na Universidad Nacional de Chapingo teriam um papel central para o início do movimento muralista mexicano. Estas obras são uma demonstração da monumentalidade e do vigor do trabalho de Rivera, bem como do desenvolvimento político do próprio autor.
Cobrindo 1585 m², o conjunto de murais da Secretaria, denominado “Visión política del pueblo mexicano”, representa variados aspectos da cultura e da história popular. Diego, tendo sido influenciado pela Revolução Bolchevique – e sendo membro do Partido Comunista desde 1923 –, tentou interpretar o que pintava a partir de uma perspectiva marxista. Ele fez numerosas experiências plásticas e estéticas, com diferentes materiais e técnicas. Várias dessas questões técnico-estéticas seriam discutidas ao longo de sua carreira com o companheiro muralista David Alfaro Siqueiros (1896-1974)5, com quem teve uma polêmica pública. Nesse conjunto de murais, Diego inicialmente representou foices e martelos, operários apontando a direção da história, proletários em greve, e uma caracterização do movimento camponês com signos revolucionários.
Já os murais das paredes da Universidad Nacional de Chapingo, em especial um edifício depois denominado Capela Riverina, exigiram um grande esforço interpretativo do significado do campesinato mexicano e de sua luta por emancipação, buscando integrar aspectos pré-colombianos, o ciclo do milho e os mártires da revolução camponesa, em particular a figura de Emiliano Zapata.
No período em que trabalhou para a SEP, Diego Rivera passou a abordar as tradições populares em sua arte, chegando então a obras em que expunha a luta de classes. Ao fim dos anos 1920, com o desenvolvimento de seus murais, Diego aperfeiçoou a sua capacidade de retratar momentos históricos e compor cenas épicas, geralmente dividindo em grandes campos os opressores e os oprimidos, além de os retratar em uma multiplicidade de detalhes e dar-lhes significado. Os murais desenvolvem critérios de tamanho, proporção e localização, em sua proposta de hierarquizar personagens históricos. Como um grande mosaico de signos e formas, Rivera aprendeu gradualmente a entreter o público com enigmas, interpretações e sentidos nos seus imensos murais. Cada nova obra mobilizava discussões e comentários na imprensa e no público em geral, interessados que se mantinham por um bom tempo observando e tentando entender cada pequeno pedaço daquelas paredes tão ousadamente coloridas.
No período em que Trótski esteve junto da família de Rivera, abriu-se também uma polêmica entre comunistas do PCM e trotskistas, acerca do papel da arte na revolução. A discussão pode ser sintetizada por duas concepções: de um lado, as ideias expostas em artigos por David Alfaro Siqueiros; e por outro, o manifesto redigido e assinado por André Breton, Trótski e Rivera, denominado “Manifiesto por un arte revolucionario independiente”. Em linhas gerais, este manifesto defendia a importância da liberdade criativa do artista, que estava sendo sufocada no regime fascista da Alemanha, mas também estaria sendo cerceada na URSS. Segundo o manifesto, o comunismo não se opunha ao sentido da arte evidenciado pela psicanálise. Mais relacionado à arte surrealista de Breton do que à própria obra de Rivera, a declaração afirmava: “Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à Revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista”6. O manifesto tinha como objetivo opor-se à posição soviética sobre a arte, e ao seu papel na luta de classes que se desenvolvia na URSS. Essencialmente, o texto defendia que a arte e as ciências – ou a atividade intelectual dos revolucionários marxistas – não deveriam ser dirigidas pelas necessidades, planos ou diretrizes do Partido Comunista, mas que era uma necessidade do processo criativo a liberdade individual plena do artista.
O maior antagonista desse manifesto foi David Alfaro Siqueiros, militante do PCM, que acusava a posição de Rivera e Breton de decadência pequeno-burguesa, já que não superava o papel do “gênio individual” no processo de criação artística, e abstraia a luta de classes e o significado histórico das obras. Ademais, Siqueiros denunciava a posição cômoda de artistas, como Rivera, que circulavam entre empresários e mecenas com gordos soldos para a sua arte independente.
Ao longo dos anos 1940, Rivera foi se aproximando novamente do PCM, na mesma medida em que os comunistas passavam a liderar as frentes antifascistas durante a II Guerra e as frentes únicas em países da periferia colonial, trazendo temas relacionados ao nacionalismo antiimperialista para o centro da política comunista do pós-guerra. A luta de classes entre proletariado e burguesia, ou entre camponeses e latifundiários se complexificava, vindo à baila debates sobre saúde, água e principalmente a herança indígena latino-americana. Os textos de Rivera, bem como as suas obras murais dessa segunda fase, procuram explorar uma perspectiva anticolonial da história, retratando a resistência indígena, dando significado e protagonismo aos astecas, à cidade de Tenochtitlán, às calaveras, e enriquecendo de detalhes, cores e densidade a história popular e pré-colonial mexicana. São desse período os murais que retratam multidões de nahuas em Tenochtitlán. A partir dos pincéis de Rivera temos a primeira importante reconstrução da visão dos espanhóis ao verem o Vale do México com o Templo Mayor, as construções mexicas, o mercado de Tlatelolco e as centenas de outros detalhes visuais épicos da história mexicana.
A partir do início da Guerra Fria, Diego se envolverá nas Campanhas pela Paz promovidas pela URSS, denunciando através de sua obra os crimes atômicos contra as populações de Hiroshima e Nagasaki, e retratando em detalhes as posições políticas sustentadas pelo PCM no plano internacional. Cabe destacar o seu entusiasmo com vitória comunista na China em 1949 e suas denúncias sobre as invasões estadunidenses na América Latina. Em seus textos da década de 1950, sua percepção do papel da arte já está muito relacionada a um papel de propaganda; inclusive é com essa reflexão que Rivera inicia um dos artigos dessa época, que tem como tema exatamente a definição do que é arte. Propaganda política e ideológica já não se apresenta mais como um empecilho para a liberdade criativa do artista, mas como uma condição imprescindível da arte em uma sociedade dividida em classes.
3 – Comentário sobre a obra
A obra de Rivera pode ser entendida pelo mesmo fio condutor pelo qual se entende a história contemporânea da primeira metade do século XX. Na década de 1920, sob influência direta da Revolução Mexicana e da Revolução Russa, Diego pintou zapatistas, revolucionários, comunistas, agraristas e o cotidiano popular. Na medida em que o fascismo emergiu, que a URSS se consolidou e houve uma intensa luta política no interior do movimento comunista, personalizado nas figuras de Stálin e Trótski, seus murais procuraram se posicionar, explicar e ilustrar as contradições dos novos tempos. Após a II Guerra Mundial, Rivera também procurou interpretar o novo período que se abria, denunciando os efeitos da bomba atômica, retratando a luta anticolonial, a Revolução Chinesa, o imperialismo estadunidense e a defesa da paz sob o socialismo.
Os textos que Diego Rivera escreveu ao longo da vida foram publicados em jornais e revistas ligadas à esquerda, e que tratavam de artes plásticas. Diego escreveu muito, participou de várias polêmicas. Destacamos a seguir alguns de seus artigos, textos e livros que ilustram os temas principais e as posições mais relevantes do marxista.
Um importante compilado de textos de Diego Rivera está no livro Palavras ilustres (1921-1957), publicado em 2007 pelo Museo Estudio Diego Rivera, no México. Nessa obra são tratados diversos temas, entre os quais se destacam os relacionados à arte e a seu significado político e revolucionário. As abordagens são diversas, desde análises acerca do papel da arte moderna e da arte na Rússia, à questão da nacionalidade e as diversas personagens que inovavam e surgiam no debate artístico e cultural, além de críticas e autocríticas sobre sua posição quanto ao legado de Stálin na URSS, bem como cartas e apresentações dos murais pintados.
Outras duas compilações similares, com grande parte dos mesmos textos importantes, podem ser encontradas nas suas obras escolhidas, organizadas por: Xavier Moyssén: Textos de arte [II tomos] (México: El Colégio Nacional, 1996); e por Raquel Tibol, Arte y política (México: Grijalbo, 1979)7. Dessas publicações, citamos seus escritos mais significativos, os quais refletem bem as suas posições, e especialmente a maneira como ele entendia a relação entre marxismo e arte.
No artigo “La posición del artista en Rusia hoy en dia”, publicado originalmente na revista Arts Weekly (v. 1, n. 1, Nova Iorque, mar. 1932), Diego Rivera elabora uma primeira crítica a União Soviética, o que culminaria com sua aproximação com o trotskismo. Enaltece o desenvolvimento do teatro como a forma mais desenvolvida das artes soviéticas, enquanto percebe uma decadência nas artes plásticas do país. Associando o desenvolvimento artístico às etapas históricas da luta de classes, compara o desenvolvimento do teatro francês no século XIX ao grau de desenvolvimento do país na época. Para o autor, é necessário que os artistas russos se libertem da estética pequeno-burguesa de outras épocas, que abandonem a pintura de cavalete, individual e limitada, o que segundo ele tinha sido desenvolvido pela burocracia estatal, alimentada na NEP e sustentada por Stálin.
Pouco depois, escreve um texto que trata de um dos temas mais centrais da arte: “¿Para qué serve el arte?” (Modern Monthly, v. 7, n. 3, Nova Iorque, jun. 1933). No ensaio, Rivera questiona o desenvolvimento das artes plásticas soviéticas, que muitas vezes mantiveram a mesma forma e estética czarista, substituindo apenas as figuras de suas obras. Em lugar de colocar o Czar, retratavam Lênin, ao invés de pintarem as batalhas da Guerra da Crimeia, pintavam da mesma maneira, com as mesmas composições e formas, as batalhas do período da Guerra Civil Revolucionária (1918-1921). Para Rivera, a maneira de superar essa dificuldade estaria em entender que os artistas deveriam não apenas se interessar e pintar temas proletários e camponeses, mas se colocar como acompanhantes dessas classes, estando assim verdadeiramente a serviço da classe proletária, como soldados da revolução.
Em “Nacionalismo y arte” (The Worker’s Age, Nova Iorque, 15/06/1933), Rivera critica o nacionalismo que estaria surgindo nos EUA, associando-o ao fascismo e ao giro reacionário da burguesia estadunidense, o que segundo o autor havia ficado patente após o episódio da pintura de Detroit, em que Rockfeller proibiu o rosto de Lênin em sua obra mural.
Em “Arquitetura y pintura mural” (The Architectural Forum, Nova Iorque, jan. 1934), Rivera associa duas personagens das ciências, Morse e Fulton, para demonstrar que arte e progresso tecnológico andavam juntos. A partir disso, o marxista muralista faz uma crítica à tendência dos arquitetos de impedir ou limitar as áreas destinadas a um mural em seus projetos. Segundo ele, pensam sempre o mural como algo figurativo e secundário, mas deveriam tratar o mural como algo fundamental – que ocupasse todos os espaços. Estes lugares deveriam ser pensados já com possíveis murais – apenas dessa forma os arquitetos poderiam apoiar a popularização da arte, objetivo central do movimento muralista.
No artigo “La lucha de classes y el problema indígena” (Revista Clave, n. 2, nov. 1938), Diego Rivera acusa a posição estadunidense em relação à população indígena, usando o “problema indígena” para cometer todo tipo de atrocidades. Ele mostra também como os espanhóis colonizaram a América com a mesma intenção de usar a mão-de-obra escrava dos indígenas. Ele critica o processo de colonização e as subsequentes consequências para a população nativa. Fala ainda da questão agrária no México da década de 1930, e sobre a posição do novo governo pós-revolucionário quanto à distribuição de terras.
Em “El arte, base del panamericanismo” (Revista Así, n. 144, ago/1943) o autor começa delineando as políticas falidas das grandes potências europeias ao longo da história. Mas quanto às Américas, diz que na cultura americana “persiste sobretudo por meio da obra de arte uma cosmogonia, um sentido filosófico realista e maravilhoso”. Quando a sociedade americana não era dividida em classes, como coloca o autor, a arte existia plenamente e se expandia.
Em “Arte antiguo mexicano”, texto apresentado em 1956 em uma conferência do Partido Comunista do México, e publicado na citada coletânea de 1979, Rivera exalta o valor das antigas pinturas feitas em paredes rochosas das cavernas, destacando a extensão e o movimento destas pinturas – que só poderiam ser comparadas com o audiovisual dos dias atuais. A explicação novamente retoma a tese de que em uma sociedade sem classes, a arte seria mais desenvolvida, relacionando as possibilidades criativas do comunismo primitivo com as do futuro comunismo.
Rivera também é coautor do mencionado “Manifiesto por un arte revolucionario independiente” (Partisan Review, Nova Iorque, 1938), assinado juntamente com Trótski e André Breton – renomado teórico do dadaísmo e surrealismo. Neste manifesto, eles abordam críticas ao modelo de arte controlado pelo Partido Comunista, enfatizando a necessidade de uma expressão artística independente que respeite a individualidade criativa. O documento defende a liberdade individual do artista como um elemento crucial para a criação, mesmo quando a arte se compromete com questões sociais. Ressaltando o indivíduo no papel de criador, o documento foi um marco na carreira de Rivera. Este seu alinhamento com o trotstkismo, porém, foi uma fase curta na carreira do artista.
No documento que Diego Rivera escreve à comissão de controle do PCM para a solicitação de reingresso8 (em 1954), ele fala longamente sobre o abandono de suas relações com o trotskismo. Considerava uma questão pontual em sua carreira, episódica, e afirma que naquela época já não trabalhava com trotskistas. Diego fala ainda sobre como está “inteiramente de acordo com a atual linha política do Partido”. Essa aproximação, além do rompimento claro com Trótski, demonstra a posição internacional sobre Stálin, valorizado como o vitorioso da II Guerra Mundial, como o líder que estava avançando com o socialismo na URSS. Como Rivera, diversos artistas da época, tais como Picasso, fizeram homenagens a Stálin no meio da década de 1950.
No documento “Del arte”, publicado no catálogo da exposição “45 Autorretratos de pintores mexicanos” (México, 1947), Rivera fala sobre como a arte, em um nível individual, é “uma função orgânica que se pode canalizar, intensificar, especializar, destruir ou atrofiar por meio da técnica”. Com esta visão, ele já se mostra afastado do anterior manifesto que assinara com Breton, no qual colocava a individualidade do artista em primeiro lugar – no cerne do processo criador. Agora, diferentemente, Rivera afirma: “não existe uma arte pura, uma arte apolítica”. Percebendo a arte como uma ferramenta de propaganda usada por explorados e exploradores, diz que: “Toda arte é propaganda”, em consonância com a posição política comunista da época sobre a arte na URSS.
Cabe ainda ressaltar o prefácio (“Introducción”) escrito em 1930 por Rivera9, para apresentar a coletânea de gravuras de José Guadalupe Posada – “Monografia de 406 grabados” (Mexican Folkways, Cidade do México, 1930) –, um dos criadores das tão conhecidas calaveras mexicanas. O texto ressalta as características originais nas gravuras de Posada e opõe essas características à decadente arte burguesa. Esse livro foi responsável por popularizar e tornar conhecida mundialmente a obra de Posada e suas calaveras, tema de muitos murais de Rivera.
Pouco antes de sua morte, em 1957, foi publicado o guia fotográfico Sus frescos en el Palacio Nacional de México (México: Palacio Nacional), com detalhes de seus murais neste edifício.
Para se conhecer mais da obra de Diego Rivera, pode-se consultar diversos textos e catálogos em portais como: Museo Anahuacalli (https://museoanahuacalli.org.mx), museu em forma piramidal mesoamericana construído para abrigar o acervo de artefatos antigos que Rivera juntou ao longo da vida; Murales de la Secretaría de Educación Pública (https://murales.sep.gob.mx); Instituto Nacional de Bellas Artes y Literatura (https://inba.gob.mx), com um passeio virtual pelo Palacio Nacional de Bellas Artes; Historia-Arte (https://historia-arte.com); Museo Mural Diego Rivera (museomuraldiegorivera.inba.gob.mx); e a publicação “Palacio Nacional”, disponível no portal do governo mexicano (https://www.gob.mx).
4 – Bibliografia de referência
CRUZ MAJARREZ, Maricela González. La polémica Siqueiros-Rivera: planteamientos estético-políticos (1934-35). Cidade do México: Museo Dolores Olmedo Patiño, 1996.
Lozano, Luis Martín y CORONEL RIVERA, Juan Rafael. Diego Rivera: obra mural completa. Colonia (Alemania): Taschen, 2010.
MATUTE, Álvaro. La revolución mexicana: actores, escenarios y acciones – vida cultural y política (1901-1929). México, Editorial Océano, 2002.
MONSIVÁIS, Carlos. La cultura mexicana en el Siglo XX, México: El Colégio de México, 2010.
ROCHFORT, Desmond. Mexican muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros. São Francisco (EUA): Chronicle Book, 1998.
SÁNCHEZ, Américo (coord.). Raíces iconográficas: mural Sueño de una Tarde Dominical en la Alameda Central de Diego Rivera. Cid. México: INBA, 2010.
SECRETARÍA DE EDUCACIÓN PÚBLICA. Diego Rivera: catálogo geral de obra mural y fotografía personal. Cid. México: SEP e INBA, 1988.
SIQUEIROS, David Alfaro. Me llamaban El Coronelazo (memorias). Cid. México: Grijalbo, 1977.
VASCONCELLOS, Camilo Mello. Imagens da Revolução Mexicana: o Museu Nacional de História do México (1940-1982). São Paulo: Humanitas/Alameda, 2007.
WOLFE, Bertram D. La fabulosa vida de Diego Rivera. Cid. México: Diana, 1989.
Notas
* Felipe Santos Deveza é coordenador do Núcleo Práxis-USP e editor do Dicionário marxismo na América. Professor de História na rede pública e professor universitário de História da América, é bacharel em História (UFRJ) e doutor em História Comparada (UFRJ/UNAM), com pós-doutorado em História da América Latina (UFF). Autor de, entre outras obras: O movimento comunista e as particularidades da América Latina (UFRJ/ UNAM, 2014).
* Marina Mainhard é historiadora (Universidade Federal Fluminense), pesquisadora do muralismo mexicano e do cinema. Autora de, entre outras obras: “Pesadilla de guerra y sueño de paz: a questão Stálin na obra de Diego Rivera” (Poder e Cultura, v. 7, 2020).
* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes, Joana Aparecida Coutinho e Paulo Alves Junior, e ilustração de Felipe Santos Deveza, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América. Permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: editoria@nucleopraxisusp.org.
1 Museo Mural Diego Rivera. Disp.: https://museomuraldiegorivera.inba.gob.mx.
2 “Catrinas” é a denominação dada às caveiras mexicanas que retratam pessoas e situações sociais de maneira crítica. As caveiras estão relacionadas ao legado mesoamericano, à estética das pinturas de antigos códices pré-colombianos e coloniais, e foram popularizados contemporaneamente por Guadalupe Posada, que as usou para realizar sátiras políticas, especialmente sobre a I Guerra Mundial e a Revolução Mexicana.
3 Os dois outros muralistas são: David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco.
4 Disponível na página eletrônica da SEP: https://murales.sep.gob.mx
5 Cruz Majarrez, 1996.
6 Bretón; Rivera; Trótski. “Manifiesto por un arte revolucionario independiente”. Partisan Review, Nova Iorque, 1938.
7 Rivera [org. Tibol]. Arte y política. México: Grijalbo, 1979.
8 Rivera, 1979, p. 347-355.
9 Rivera, Diego. “Introducción”. Em: Posadas, José Guadalupe. Monografía: 406 grabados. Cidade do México: Toledo, 1991, s/p [Mexican Folkways, Cid. México, 1930].