O marxismo de Raya Dunayevskaya

Jornalista, tradutora, editora e filósofa, trabalhou com Trótski, foi precursora do chamado “humanismo marxista” e se dedicou a ampliar as lutas sociais para além do recorte de classe, buscando integrar pautas do movimento feminista e negro Por Solange Struwka e Giovanna Imbernon * DUNAYEVSKAYA, Raya; Raya Shpigel; Rae Spiegel; “Freddie Forest”; “Freddie James” (russo-ucraniana-estadunidense; Yaryshiv/Império Russo, 1910 – Chicago/Estados Unidos, 1987). 1 – Vida e práxis política Raya Dunayevskaya, nascida Raya Shpigel, é oriunda da região ocidental do antigo Império Russo, atualmente o estado (oblast) de Vinnytsia, na Ucrânia (fronteira com a Moldávia). De sua cidade natal, acompanhou o processo revolucionário que transformaria a Rússia imperial na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). As duras condições locais de subsistência, o difuso ambiente antissemita e os efeitos da Guerra Civil Russa (1918-1922) fizeram com que, em 1922, sua família decidisse emigrar para os Estados Unidos (EUA) em busca de melhores condições de vida. Sem acesso à educação formal e falando apenas iídiche, Raya Shpigel (cujo nome passou a ser grafado Rae Spiegel no novo país) chegou ao gueto judeu de Chicago aos 12 anos de idade – quando afirmou ter visto, pela primeira vez, uma pessoa negra. Ali, sua família conviveu com discriminações e preconceitos por conta da religião e da condição de imigrante. Tal ambiente foi importante para a formação intelectual e militante de Dunayevskaya, a ponto de ela se considerar produto de duas “revoluções”: a da Rússia de 1917 e a dos guetos de Chicago. Começou a se interessar por política e pelo marxismo já na adolescência, a partir de sua ativa participação junto aos movimentos negros. Em 1925, filiou-se ao Negro Labor Congress (NLC) [Congresso Operário Negro] dos EUA –, uma organização que lutava contra a exploração dos trabalhadores e a discriminação racial sofrida pelos afroestadunidenses – passando a trabalhar na equipe de seu jornal, o The Negro Champions [Os Campeões Negros]. Em seguida, integrou-se à Young Communist League [Juventude Comunista] do Communist Party of the United State of America [Partido Comunista dos Estados Unidos da América] (CPUSA) – do qual seria expulsa em 1928 por ter questionado os motivos pelos quais Leon Trótski fora banido do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e da Internacional Comunista (IC). Por este tempo, aproximou-se do grupo de trotskistas de Boston que, excluído do CPUSA, fundou a Communist League of America [Liga Comunista da América] – organização dirigida por Antoinette Buchholz Konikow, médica marxista que militava pelo direito das mulheres à anticoncepção e ao aborto. Na década de 1930, Raya adotou o nome de solteira de sua mãe, Dunayevskaya. Em 1937, apesar de não ter permissão da organização de trotskistas, viajou ao México, para se aproximar de Trótski, então exilado na capital do país. Entre 1937 e 1938, aprendeu russo de maneira autodidata, intensificou diálogos e se tornou secretária e colaboradora do líder revolucionário – embora ainda sem autorização das organizações político-partidárias. Tudo isso em meio ao turbilhão político em torno dos chamados Processos de Moscou (série de julgamentos de opositores de Josef Stálin, movidos pelo governo soviético) e da Comissão Dewey (que averiguava as acusações contra Trótski durante estes julgamentos). Com o falecimento de seu pai e irmão, regressou a Chicago em 1938. No ano seguinte, havendo começado a II Guerra Mundial, Dunayevskaya rompeu com Trótski – por discordar de suas declarações em favor do posicionamento soviético no confronto, especialmente no que se referia ao acordo de não-agressão assinado pela URSS e pela Alemanha nazista (conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop). Seu afastamento de Trótski e do trotskismo foi duplo: físico, pois voltou a viver nos EUA; e teórico, uma vez que, imersa na realidade estadunidense, passou a entender o modelo “socialista soviético” à luz do conceito de “capitalismo de Estado” – isto é, segundo ela, a URSS se tornara uma forma de “Estado capitalista” – enquanto para o líder opositor exilado, apesar dos problemas que apontava, continuava a ser um “Estado de trabalhadores”. Em 1941, Raya sistematizou esta discussão, publicando em um boletim do Workers Party [Partido dos Trabalhadores] (WP) – partido ao qual se integrara no ano anterior – seu primeiro texto com maior impacto: “The Union of Soviet Socialist Republics is a capitalist society” [“A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é uma sociedade capitalista”], trabalho assinado com um pseudônimo (Freddie James), no qual se contrapôs à visão da maioria dos membros do partido, que entendiam a URSS como uma sociedade “coletivista burocrática”. No mesmo período, intensificou sua atuação junto aos movimentos negros, aproximando-se de C. L. R. James (que usava o pseudônimo J. R. Johnson) – autor do clássico The black jacobins [Os jacobinos negros]. Ambos tinham posições críticas semelhantes acerca do afastamento do Estado soviético do que imaginavam ser sua orientação original. Em 1945, fundaram juntos, dentro do WP, uma corrente marxista que viria a ser conhecida como “humanista” – também chamada de Johnson-Forest Tendency –, a qual contou com a contribuição de Grace Lee Boggs (de pseudônimo Ria Stone). Dentre os temas centrais abordados pelo grupo, estavam: o pensamento de Hegel e seu impacto na produção intelectual de Marx; e a questão étnica e o racismo. No ano de 1947, Raya Dunayevskaya participou da conferência da IV Internacional, em Paris, apresentando sua polêmica concepção sobre o que seria o “capitalismo de Estado” – ocasião em que se contrapôs aos argumentos do líder trotskista Ernest Mandel. Já no início dos anos 1950, a autora rompeu também com C. L. R. James. Neste tempo, ela atuou ativamente nas greves dos mineiros da Virgínia Ocidental (1949-1950), com cujas lideranças manteve fortes relações dentro e fora do âmbito do movimento grevista. A partir desta experiência, passou a analisar a presença e a participação de mulheres – esposas dos mineiros – nas greves. Verificando que eram retratadas pela imprensa como aquelas que tão somente acompanhavam os atos políticos, tratou de destacar nelas a função de ativistas – notando ainda que, por vezes, eram elas próprias que impulsionavam a movimentação dos homens. Ao observar que as intervenções realizadas pelas esposas não ocorriamContinuar lendo “O marxismo de Raya Dunayevskaya”