Jornalista, contador, editor e historiador do movimento operário peruano, o intelectual marxista foi parceiro de Mariátegui na revista Amauta e fundador do Partido Socialista del Peru (depois nomeado Partido Comunista del Peru) Por Jean-Ganesh Faria Leblanc * MARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo (peruano; Lima, 1904 – s/l, 1968) 1 – Vida e práxis política Nascido em 1904, Ricardo Martínez de la Torre teve como pais Ricardo Martínez (um engenheiro espanhol) e Juana de la Torre. Sua família materna, com uma longa linhagem de membros das elites de Lima, descende de Juan de la Torre, companheiro de Francisco Pizarro. Desde jovem, Martínez de la Torre demonstrou um precoce talento literário. Estudou inicialmente no jesuítico Colegio de la Inmaculada, e fez o ensino médio no Colegio Nacional de Nuestra Señora de Guadalupe, onde conheceu algumas das figuras literárias do momento, como Gamarra Hernández. Aos onze anos, em 1915, ele escreveu a novela Tragedia: o la noche misteriosa – e enviou alguns poemas para um jovem jornalista e crítico literário em ascensão colaborador do jornal La Prensa, José Carlos Mariátegui. A partir de então, os dois construirão uma amizade que levará Mariátegui a frequentar a casa dos Martínez – chegando inclusive a viver uma platônica paixão pela pintora Juanita Martínez de la Torre, irmã mais velha de Ricardo. Apesar da distância que os separa durante a estadia europeia de Mariátegui (entre 1919 e 1923), a relação de carinho e proximidade se manteve, como mostram os vários cartões-postais endereçados ao jovem Martínez, desde a Itália. Na universidade, estudou contabilidade e, logo de formado, obteve emprego como caixeiro, na corretora de seguros La Popular, na capital do país. Próximo ao movimento estudantil, Martínez testemunhou as grandes manifestações de 1918-1919 e a primeira greve geral da história peruana. Como outros membros da juventude pequeno-burguesa, frequentou círculos operários e estudantis que estavam na vanguarda das lutas e do movimento social liderado pelos primeiros sindicatos e pela Federação dos Estudantes. Dessa conjunção nasceria a Universidad Popular Manuel González Prada, na qual Mariátegui pronunciou os primeiros discursos marxistas para o público limenho, nos anos de 1923 e 1924. Desde então, Martínez de la Torre frequentou a casa de Mariátegui e suas tertúlias, que agregavam artistas, operários e intelectuais, lendo textos marxistas e se formando politicamente. Como muitos jovens politizados da época (Eudocio Ravines, Jorge del Prado, Manuel Seoane, Carlos Manuel Cox), Martínez acompanhou os esforços editoriais e organizativos de Mariátegui na primeira metade da década de 1920, assim como a criação da Aliança Popular Revolucionaria Americana (APRA), liderada por Víctor Raúl Haya de la Torre – líder estudantil de Lima, então desterrado no México. Esses jovens intelectuais e militantes formaram a “Geração do Centenário” (referência à Independência), da qual surgiram os primeiros quadros do partido comunista e do partido aprista. Em 1927, Martínez de la Torre foi chamado por Mariátegui para ajudá-lo na revista Amauta, lançada no ano anterior, na qual assumiu o cargo de gerente – uma função em que desempenhou importante trabalho para a estabilização financeira do projeto. Martínez assumiu então a codireção do periódico e organizou, a partir de 1928, a Sociedad Editora Amauta, que abarcava atividades editoriais e jornalísticas; além da revista, o grupo liderado por Mariátegui lançou o jornal Labor. Paralelamente à sua atividade na direção, Martínez colaborou firmemente com a publicação por meio de artigos, como “El movimiento obrero en 1919” (1928), e “La teoria del crecimiento de la miseria aplicada a nuestra realidad” (1929), entre outros; com mais de uma dezena de artigos, o autor seria um dos colaboradores mais prolíficos da revista. Membro importante do grupo mais próximo de Mariátegui, ele participou diretamente das polêmicas que provocaram a cisão da APRA em 1928, e das reuniões que decidiram pela criação do Partido Socialista del Perú (PSP), entre setembro e outubro do mesmo ano – que seria depois denominado Partido Comunista del Peru (PCP). A ação militante tomou desde então uma porção grande da atividade de Martínez de la Torre. Implicado tanto no Partido (como secretário de Propaganda), quanto na recém-nascida Confederación General de los Trabajadores del Perú (CGTP), à época ele se corresponderia com mineiros das grandes minas de cobre e prata da Sierra Central – para apoiá-los em seus esforços de organização sindical e política. Ademais, Martínez preparou com Mariátegui os documentos para serem enviados para as duas grandes conferências convocadas pela Internacional Sindical Vermelha, em Montevidéu, em maio de 1929, e pela Internacional Comunista (IC), em Buenos Aires, em junho de 1929. Esses documentos foram longamente discutidos na conferência de Buenos Aires, com debates girando em torno do nome do Partido (que de início, devido à correlação de forças no Peru, deveria ser “Socialista”, não “Comunista”); e das características do imperialismo. A posição do partido foi defendida por seus dois representantes, o médico Hugo Pesce e o sindicalista Julio Portocarrero, com base no documento, em grande medida redigido por Mariátegui, que ambos apresentaram – intitulado “El problema de las razas en América Latina”. A morte de Mariátegui, em abril de 1930, aconteceu em um momento de efervescência da atividade do Partido, com a queda do governo de Augusto Leguía e uma dura luta política contra a APRA. Martínez, em contato direto com a Secretaria Sul-Americana da IC, membro do Comitê Executivo do PCP, tesoureiro do Partido e secretário da Liga Anti-Imperialista no Peru, assumiu também a direção da revista Amauta, publicando ainda três números dela – antes de que a atividade editorial fosse definitivamente interrompida. Ele teve, portanto, uma função importante na direção política do movimento, em particular nos esforços de massificação entre os proletários mineiros da região serrana e nos debates sobre a estruturação nacional da CGTP. Contudo, logo a saúde de Martínez de la Torre limitaria suas tantas atividades: com uma crise no final de 1930 e outra em 1931. Convidado pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos para lecionar Economia marxista, não pôde desempenhar o trabalho, sendo preso em junho de 1931, acusado de fazer propaganda política. Para protestar contra a sua prisão, Martínez começouContinuar lendo “O marxismo de Ricardo Martínez de la Torre”
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O marxismo de José Carlos Mariátegui
Escritor, jornalista, editor, cientista social, filósofo e dirigente comunista peruano, foi pioneiro de um marxismo propriamente americano – trazendo ao centro do debate marxista temas como o do comunismo indígena e da necessária relação entre as posturas realista e romântica na construção revolucionária Por Yuri Martins-Fontes* MARIÁTEGUI, José Carlos; “Amauta”, “Juan Croniqueur” (peruano; Moquegua, 1894 – Lima, 1930) 1 – Vida e práxis política Nascido no Sul do Peru, José Carlos Mariátegui La Chira se mudou ainda criança para Huacho, cidade próxima à capital. Seu pai, funcionário público, cedo abandonou a família, cabendo à mãe, María Amalia La Chira Vallejos – costureira católica de ascendência indígena – criar os três filhos. Em 1902, Mariátegui sofreu um acidente na escola e fraturou o joelho – episódio que evoluiu mal, deixando-o manco. Entretanto, no tempo em que esteve internado em um hospital de Lima, dedicou-se a ler diversos livros a que teve acesso e a estudar francês – dando assim um primeiro impulso a sua extensa formação, que viria a ser sobretudo autodidata. Já em 1909, começou a trabalhar com tipografia no jornal La Prensa. No prelúdio da I Guerra Mundial, debutou na escrita, com crítica literária e versos, para logo publicar seus primeiros artigos jornalísticos com temas políticos. Sob o pseudônimo de Juan Croniqueur, satirizou a frivolidade limenha, demonstrando um amplo conhecimento que o aproximou de círculos intelectuais e artísticos de vanguarda, bem como do movimento operário (de linha anarquista) que se gestava desde o fim do século, trazido à América por imigrantes europeus. Destacando-se como jornalista, Mariátegui pouco depois se tornou cronista do jornal El Tiempo (1916), no qual passou a se dedicar ao embate político, denunciando a falsidade da “democracia mestiça”: um sistema demagógico que servia às classes dominantes como fonte de “divertimento”, desviando a atenção popular do fato de que a burguesia da região costeira, aliada aos grandes proprietários rurais do interior, tornavam o Peru cada vez mais um “setor colonial” do imperialismo estadunidense. Seus textos deste período se desenvolveram durante uma época de forte alta nos preços dos alimentos e consequente descontentamento popular, em que crescia a agitação dos trabalhadores – e entrava em crise o domínio político da oligarquia (financeira, extrativista e agroexportadora). Já adepto do socialismo, o autor apoiou greves e enfrentou a elite dirigente limenha. Em 1918, teve início em Córdoba (Argentina) um movimento pela Reforma Universitária, que depois abrangeria todo o continente; entusiasmado, Mariátegui afirmou ser este o “nascimento da nova geração latino-americana”. Ainda neste ano, participou da fundação da efêmera revista Nuestra Época, outro marco da política peruana daquele início de século: uma publicação que, se não traçava ainda um “programa socialista”, aparecia como um esforço ideológico nesta direção. Com isto, ele dava início a suas atividades como editor, o que perfaria importante parcela de sua atuação política madura: comunista. A vitória da Revolução Russa e o fim da I Guerra assinalou – no Peru e no mundo – um período de agitação das classes trabalhadoras. Em 1919, Mariátegui e seu camarada César Falcón fundaram o jornal La Razón – que logo se tornou uma voz destacada em prol das reivindicações operárias. Neste mesmo ano, uma greve geral foi reprimida na capital com violência e prisões; iniciava-se uma década de populismo de direita – economicamente pró-estadunidense, mas que também flertava com o movimento indigenista. Mariátegui, por meio de seu periódico, saiu em defesa dos líderes operários presos, atitude que fez com que ele viesse a ser aclamado por uma multidão nas ruas. Contudo, um mês depois, a redação do jornal foi fechada, e ele, ainda que de modo discreto, exilado na Europa, vindo a receber uma espécie de bolsa governamental – supostamente a título de propagandista do Peru no estrangeiro (em verdade, uma benesse conciliadora, já que por casualidade era parente da esposa do presidente Augusto Leguía). Como ele relataria (“Apuntes autobiográficos”, 1927), seguiu então viagem, rompendo com sua experiência inicial de literato “contaminado de decadentismo” (individualismo, ceticismo) e se voltando “resolutamente” ao socialismo. Viveu três anos e meio por lá (entre fim de 1919 e 1923), tendo conhecido alguns países: Hungria, Áustria, Tchecoslováquia, Alemanha, Suíça, França e, em especial, Itália, onde passou a residir. Em meio à influência da conjuntura ali experimentada – na qual ecoava alto a Revolução Soviética –, a Europa o aproximou das obras de Marx, Engels e Lênin, além do movimento comunista italiano e do surrealismo. No Partido Bolchevique ele enxergou a convergência entre teoria e prática, entre filosofia e ciência; afirmou que Lênin era “incontestavelmente” o revigorador “mais enérgico e fecundo do pensamento marxista”. Ainda segundo ele, nesse período, casou-se com “uma mulher e algumas ideias”; a italiana Anna Chiappe, sua companheira, transmitiu-lhe um “novo entusiasmo político”. A família dela era próxima ao filósofo Benedetto Croce, por meio de quem Mariátegui conheceria a obra de Georges Sorel – sindicalista-revolucionário do qual absorveu ideias como a do “mito da greve geral” e da defesa do uso da violência revolucionária contra a violência instituída. Na Itália, ele assistiu a ocupações de fábricas, congressos de trabalhadores e se aproximou do coletivo editor da revista L’Ordine Nuovo; participou de grupos de estudos socialistas, travou contato com o pensamento de Antonio Gramsci e de Umberto Terracini, e vivenciou a criação do Partido Comunista da Itália (a partir de cisão do Partido Socialista Italiano). Sua estada europeia foi também um mirante donde pôde observar o Oriente: a Revolução Chinesa e o despertar da Índia, dos árabes e dos diversos movimentos nacionalistas e anti-imperialistas do pós-guerra. Nestes acontecimentos, verificou um processo de declínio da sociedade ocidental. Tal concepção se reforçaria quando viu de perto a ascensão fascista italiana – o que percebeu como resposta do grande capital a uma profunda crise social e política. Em paralelo a esta efervescência sociopolítica, Mariátegui teve acesso às obras de Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche, interessando-se tanto pela recém-criada psicanálise, como pela filosofia intuitiva (ou vitalista). Porém, se de início ele trouxe consigo a humildade de um discípulo aberto ao então centro do pensamento moderno, progressivamenteContinuar lendo “O marxismo de José Carlos Mariátegui”