A percepção do posicionamento militante e pioneiro da “Mulher do Povo” pode ser um dos caminhos para o melhor entendimento dos desmandos que a torpe elite brasileira impõe às trabalhadoras no país Por Paulo Alves Junior* No dia 26 de abril, o projeto de lei que prevê multa para empresas que pagarem salários distintos entre homens e mulheres que exerçam a mesma profissão retornou à Câmara dos Deputados. Ele já havia sido aprovado pelo Senado em março, mas o deputado e presidente da Câmara, Arthur Lira, solicitou à Presidência da República a volta do projeto. O recente ocorrido é apenas um dos diversos retratos contemporâneos do diálogo sobre a questão de gênero no Brasil. Nesse caso, aponta a necessidade existente da tramitação de leis que assegurem os direitos das mulheres. O cenário ressalta a histórica falta de equidade que acompanha a sociedade. Se voltarmos no tempo, há exatos 90 anos atrás, no mesmo mês, o jornal “O Homem do Povo” lançava sua última edição. Nele, o tema foi debatido de forma notória e inédita na sociedade brasileira, devido à coragem e força de uma ativa militante intelectual: Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962). No começo dos anos 30, Pagu destoava do contexto nacional com sua veia crítica e polêmica, utilizando seu vasto repertório cultural para chamar a atenção sobre o papel das mulheres no campo da luta de classes. Pagu tinha convicção que a mulher numa sociedade desigual, tal como a brasileira, nunca fora alheia ao trabalho. A força de trabalho feminina é decisiva para a sobrevivência da família e enfrentava alto grau de exploração, sendo essa uma das marcas que o capitalismo cruento vigente impunha às trabalhadoras. Pagu ganhou espaço nas páginas do pasquim “O Homem do Povo”, que tinha como idealizador Oswald de Andrade. Nomeada de “A Mulher do Povo”, sua coluna era marcante por escancarar o quadro de desigualdade e preconceito que inundam o mundo do trabalho, principalmente no que tange o trabalho feminino. “O Homem do Povo” teve vida curta ao contar com apenas 18 dias de existência entre março e abril de 1931. Além do forte teor satírico e crítico inerente ao folhetim, Pagu chamou a atenção em suas páginas para as condições de debilidade e descaso com que as trabalhadoras eram tratadas, criticando os hábitos e valores da burguesia paulista e escrachando o provincianismo presente no começo do século XX. Com a verve afiada e já em trânsito para incursões comunistas, Pagu apontou o dedo e desfilou sua fina ironia ao retratar também os traços de aversão e pré-julgamentos direcionados às trabalhadoras por mulheres da elite paulistana. Destaco aqui o seu primeiro artigo, escrito para o número 1, lançado em 27 de março de 1931, intitulado de “Maltus Alem”. Pagu tece críticas as “feministas burguesas” que defendem o voto para apenas “mulheres cultas” em detrimento das operárias sem instrução; argumenta com a falta de tempo “com o trabalho forçado a que se tem de entregar para a manutenção dos seus filhos…” exemplifica a falta de apreço aos princípios equitativos tão necessários para tessitura social do país. Ou mesmo em “Normalinhas” no número 8 a respeito das “abomináveis burguesas”, escreve “E não raro se zangam e descem do bonde, se sobe nele uma mulher do povo, escura de trabalho” A percepção do posicionamento militante e pioneiro da “Mulher do Povo” pode ser um dos caminhos para o melhor entendimento dos desmandos que a torpe elite brasileira impõe às trabalhadoras no país. Assim, como há 90 anos, Pagu é cada vez mais necessária. * Paulo Alves Jr. é professor da Unilab (Bahia) e coordenador do Núcleo Práxis da USP.