O marxismo de Pagu

Escritora, jornalista, tradutora, desenhista e diretora teatral, participou do movimento antropofágico modernista e foi militante do Partido Comunista do Brasil e do Partido Socialista, tendo atuado também em órgão secreto da Internacional Comunista Por Walnice Nogueira Galvão * PAGU; Galvão, Patrícia Rehder (brasileira; São João da Boa Vista-SP, 1910 – Santos-SP, 1962). 1 – Vida e práxis política Paulista do interior, Patrícia Rehder Galvão, que seria conhecida como Pagu, foi criada na capital, para onde seus pais se transferiram quando ela tinha 2 anos. Era filha de Adélia Rehder e Thiers Galvão de França, advogado e jornalista, sendo Pagu a terceira de três irmãos: Conceição, Homero e Sidéria (esta última seria pelo resto da vida uma aliada, confidente e cúmplice). Iniciou os estudos no Grupo Escolar da Liberdade, à rua Galvão Bueno. Após frequentar a Escola Normal do Brás, bairro em que residia, formou-se em 1928 pela Escola Normal Caetano de Campos, na Praça da República (Centro de São Paulo), diploma que habilitava ao ensino de crianças, na escola primária. Fenômeno recente no panorama brasileiro, a “normalista” abria a perspectiva da emancipação feminina através do trabalho. Simultaneamente, Pagu assistiu aulas no Conservatório Musical. Por este tempo, Pagu foi apresentada por Raul Bopp a Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, figuras de proa do Modernismo. Com sua formosura juvenil, charme e comportamento inconvencional, Pagu abalou o cenáculo modernista; a exuberância da cabeleira, a boca polpuda, os olhos derramados – registrados no célebre poema que lhe dedicou Raul Bopp, “Coco Pagu” – tornaram-se sua marca registrada. Recém-saída de um concurso de beleza em sua cidade natal, a moça foi tragada pelo turbilhão da sociabilidade modernista, brilhando em festas e saraus paulistanos nos quais declamava a poesia de seus novos amigos. Em 1929, Pagu e Oswald de Andrade passaram a viver juntos. Num gesto típico de escândalo modernista, celebrariam sua união numa cerimônia de casamento ao pé do jazigo da família de Oswald, no Cemitério da Consolação. Dessa união, com cinco anos de duração, nasceu um filho, Rudá Poronominare Galvão de Andrade. Pagu participaria intensamente da fase antropofágica do Modernismo e prestaria colaboração à Revista de Antropofagia com desenhos, contos e poemas. No ano seguinte, ela viajou de navio a Buenos Aires, no intuito de participar de um recital e tentar encontrar Luiz Carlos Prestes, que ali vivia em exílio, mas não o encontrou. Entretanto, durante o percurso, fez amizade com Zorrilla de San Martin e travou contatos na área literária com o grupo de escritores da revista Sur: Jorge Luis Borges, Victoria Ocampo, Eduardo Mallea. À volta, ela trouxe livros e outros materiais marxistas. Já em São Paulo, Astrojildo Pereira, intelectual fundador do PCB, procura o casal. Pagu, cativada, passou a traduzir panfletos a seu pedido, declarando com entusiasmo dedicar-se doravante à “causa dos oprimidos”. Com a crise econômica que estourara em 1929, abriu-se passo a uma reconfiguração de forças, com radicalização de intelectuais, à direita e à esquerda. Encerrava-se a década de eclosão e fastígio do Modernismo, baseada numa fusão de vanguardistas com mecenas cafeicultores. Nesse processo, em 1931 Patrícia e Oswald filiaram-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB) e passaram a militar pela revolução. Ainda em 1931, o casal fundou o tabloide O Homem do Povo, que duraria apenas oito números. Hostilizado pelos estudantes da vizinha Faculdade de Direito – que chegaram a invadir a redação –, acabou proibido por ordem policial. Após o fechamento do periódico, Pagu e Oswald decidiram embarcar para Montevidéu, onde finalmente se encontraram com Prestes. Juntos, passariam dias conversando, tendo formado uma forte conexão. Pagu data deste encontro sua conversão definitiva à luta política socialista, tal o poder de convicção do líder. Sentindo-se ignorante, daí em diante Pagu procurou estudar, e mergulhou na militância. Sua primeira prisão se deu nesse ano de 1931, em Santos – maior porto do Brasil, escoadouro da riqueza principal de então, o café –, quando participou de uma greve após ser designada para militar na organização do Socorro Vermelho. Logo solta, trabalhando como operária, discursou no palanque do comício de uma greve de estivadores e foi novamente presa quando acudia um manifestante baleado pela polícia. O episódio ganhou primeira página em A Tribuna, de Santos, com o nome de Patrícia Galvão em manchete sensacionalista e acusadora. É deste evento que data sua reputação de ser a primeira mulher presa política no Brasil. Contudo, a reação do PCB diante do escândalo armado pela mídia foi negativa: a origem pequeno-burguesa de Pagu seria atacada num manifesto que desautorizava sua atuação – como agitadora individual – no palanque do comício. O período que se segue é de dificuldades para Pagu e Oswald. A polícia mantém constante vigilância sobre suas ações, forçando-os a redobrar os cuidados. Então, em 1932, o PCB recomenda a transferência dela para o Rio de Janeiro. Iniciou-se então sua fase carioca. Vivendo em um cortiço, viu-se proibida pelo partido de trabalhar no Diário da Noite, por ser esta uma atividade considerada “intelectual” – enquanto o PCB considerava necessário que ela passasse por um processo de “proletarização”. Depois de procurar em agências e tentar colocações como empregada doméstica ou de fábrica, conseguiu um posto como lanterninha de cinema na Cinelândia, passando a agir na organização de um sindicato dos trabalhadores de cinema e casas de diversão. Descoberta pelos patrões, foi despedida, indo então trabalhar como operária numa metalúrgica. Em seguida, foi nomeada para a Conferência Nacional do PCB e designada para participar da segurança – o que lhe trouxe muita alegria, reforçando sua fé na luta política e no comunismo. Nessa metalúrgica, ela organizou duas células, mas, ao adoecer, perdeu o emprego, ficando em situação precária. Assim, o PCB ordenou que voltasse a São Paulo e passasse a militar no meio intelectual. Corria o ano de 1932; na esteira do movimento separatista de São Paulo, ela e Oswald receberam ordem de prisão e passam à clandestinidade. Neste contexto, o partido – que então vivia sua fase “obreirista” (de valorização de operários na direção, em detrimento de intelectuais) – abriuContinuar lendo “O marxismo de Pagu”

Precisamos falar sobre Pagu

A percepção do posicionamento militante e pioneiro da “Mulher do Povo” pode ser um dos caminhos para o melhor entendimento dos desmandos que a torpe elite brasileira impõe às trabalhadoras no país Por Paulo Alves Junior* No dia 26 de abril, o projeto de lei que prevê multa para empresas que pagarem salários distintos entre homens e mulheres que exerçam a mesma profissão retornou à Câmara dos Deputados. Ele já havia sido aprovado pelo Senado em março, mas o deputado e presidente da Câmara, Arthur Lira, solicitou à Presidência da República a volta do projeto. O recente ocorrido é apenas um dos diversos retratos contemporâneos do diálogo sobre a questão de gênero no Brasil. Nesse caso, aponta a necessidade existente da tramitação de leis que assegurem os direitos das mulheres. O cenário ressalta a histórica falta de equidade que acompanha a sociedade. Se voltarmos no tempo, há exatos 90 anos atrás, no mesmo mês, o jornal “O Homem do Povo” lançava sua última edição. Nele, o tema foi debatido de forma notória e inédita na sociedade brasileira, devido à coragem e força de uma ativa militante intelectual: Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962). No começo dos anos 30, Pagu destoava do contexto nacional com sua veia crítica e polêmica, utilizando seu vasto repertório cultural para chamar a atenção sobre o papel das mulheres no campo da luta de classes. Pagu tinha convicção que a mulher numa sociedade desigual, tal como a brasileira, nunca fora alheia ao trabalho. A força de trabalho feminina é decisiva para a sobrevivência da família e enfrentava alto grau de exploração, sendo essa uma das marcas que o capitalismo cruento vigente impunha às trabalhadoras. Pagu ganhou espaço nas páginas do pasquim “O Homem do Povo”, que tinha como idealizador Oswald de Andrade.  Nomeada de “A Mulher do Povo”, sua coluna era marcante por escancarar o quadro de desigualdade e preconceito que inundam o mundo do trabalho, principalmente no que tange o trabalho feminino. “O Homem do Povo” teve vida curta ao contar com apenas 18 dias de existência entre março e abril de 1931. Além do forte teor satírico e crítico inerente ao folhetim, Pagu chamou a atenção em suas páginas para as condições de debilidade e descaso com que as trabalhadoras eram tratadas, criticando os hábitos e valores da burguesia paulista e escrachando o provincianismo presente no começo do século XX. Com a verve afiada e já em trânsito para incursões comunistas, Pagu apontou o dedo e desfilou sua fina ironia ao retratar também os traços de aversão e pré-julgamentos direcionados às trabalhadoras por mulheres da elite paulistana. Destaco aqui o seu primeiro artigo, escrito para o número 1, lançado em 27 de março de 1931, intitulado de “Maltus Alem”. Pagu tece críticas as “feministas burguesas” que defendem o voto para apenas “mulheres cultas” em detrimento das operárias sem instrução; argumenta com a falta de tempo “com o trabalho forçado a que se tem de entregar para a manutenção dos seus filhos…” exemplifica a falta de apreço aos princípios equitativos tão necessários para tessitura social do país. Ou mesmo em “Normalinhas” no número 8 a respeito das “abomináveis burguesas”, escreve “E não raro se zangam e descem do bonde, se sobe nele uma mulher do povo, escura de trabalho” A percepção do posicionamento militante e pioneiro da “Mulher do Povo” pode ser um dos caminhos para o melhor entendimento dos desmandos que a torpe elite brasileira impõe às trabalhadoras no país. Assim, como há 90 anos, Pagu é cada vez mais necessária. * Paulo Alves Jr. é professor da Unilab (Bahia) e coordenador do Núcleo Práxis da USP.